Eu adorei o filme O som ao redor (2013), de Kleber Mendonça Filho, com o ótimo Irandhir Santos. Não sei se foi proposital que a captação de som das falas dos atores fosse abafada pelos ruídos ao redor, mas o fato é que isso contribui para a impressão realista do filme. Belezas da ficção.
Na vida real, um dos motivos para minha mudança de casa foi o barulho de uma obra nos fundos do prédio. Insuportável para quem trabalha em casa. Isso, somado ao calor infernal e à aridez da paisagem, foi mais do que suficiente para minha busca por outro bairro, que tivesse mais verde, qualidade de vida e silêncio.
Acho que o verde está garantido por ora, mas não o silêncio. Nem reclamo dos cachorros na vizinhança, que são muitos, mas vi que fugir das obras é impossível em São Paulo. Em meio ao infinito trabalho de indexação de conteúdos que estou fazendo (pelo menos, a nova casa é muito mais fresca), ouço a sinfonia de serras, coisas sendo demolidas, escavadeiras, vinda de todas as direções. Não há mais possibilidade de paz para quem vive nesta cidade: além da violência crescente, da intolerância, há o ruído ao redor - no fundo, como no filme, trilha sonora perfeita para o caos que nos cerca.
quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014
segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014
Necessário silenciar: no Deserto do Atacama
Para chegar a San Pedro, o mais fácil é tomar o voo para Calama, uma cidade nascida da extração de cobre, sem atrativos. De Calama a San Pedro, percorre-se mais 1h30min de estrada - há empresas de transfer no aeroporto, e vale a pena contratar ida e volta (22 mil pesos, quando apenas ida custa 13 mil pesos).
A estrada para San Pedro já atravessa parte do deserto, mas não prepara para o que está por vir. Cada paisagem tem uma atmosfera muito peculiar, e é só voltar a cabeça para ver uma coisa diferente. Talvez tenha sido esse o chamado do deserto: olhar em torno, para o aparente nada, para o aparente imutável, e perceber a transitoriedade das coisas, como o que era há pouco já não é mais.
No primeiro dia, fui atrás da agência de viagens e programei três passeios a partir do dia seguinte (são muitos! difícil escolher, e o guia que comprei, para brasileiros, não deu conta de descrever as particularidades), e almocei num restaurante muito bom, ótimo custo-benefício, La Casona. Pedi um menú del día, que vem com três pratos (entrada, principal e sobremesa) por 7.500 pesos (claro que pedi café e suco, e a propina não estava inclusa, então o preço subiu para 12.000 pesos). A comida era uma delícia (pizzeta com creme de milho, cogumelos e rúcula, frango com batatas à provençal e milhojas com doce de leite), com sabor e apresentação gourmet, e pelo que soube o restaurante pertence a uma família que tem mais três estabelecimentos - cheguei a almoçar num outro, La Estaka, mais descolado, com cara de bar, mas não achei a comida à altura (o salmão não estava nem cru nem assado, eca! mas a sobremesa, torta tres leches, era ótima).Aliás, San Pedro não é exatamente o lugar para comer peixe, já que fica longe da costa (um pouco como comer ceviche em Cuzco, depois de passar por Lima). O forte são carnes gordas, como porco e lhama, ou frango. Tudo com muito alho, pimenta, salsinha, uma delícia (não tive coragem de experimentar a lhama, depois de ter visto algumas tão de perto!).
Como não faria nenhum passeio no primeiro dia (cheguei no meio da tarde), marquei uma visita a um suposto observatório. Parece que há dois na cidade, além do superprojeto ALMA, no meio do deserto, não aberto a visitas. O observatório aonde fui era na laje de um sueco que veio para a América do Sul há dez anos. Ele tinha dois telescópios grandes e pelo menos parecia conhecedor do assunto. O que dava para ver a olho nu, porém, era a mesma coisa que dava para ver no telescópio. Ainda por cima, achei o céu do Atacama menos deslumbrante que os céus do Brasil no interior e no litoral - no começo pensei mesmo que era um problema visual meu, mas depois confirmei a impressão com um casal de paulistas que também voltava para Calama no mesmo transfer. Então posso dizer o que poderia soar como blasfêmia não tivesse eu visto: nosso céu tem mais estrelas. Viva Gonçalves Dias! Nem rolou tirar fotos das estrelas do céu atacamenho, porque esqueci o tripé e também o tal sueco não estava curtindo minhas tentativas - cada vez que via o espocar do flash fazia um comentário "engraçadinho". Chato!
No outro dia, perambulei pelas ruas de San Pedro, pois meu primeiro passeio só sairia no final da tarde. Fotografei os perros, almocei e quando fui à loja da Fundación Artesanías descobri que meu cartão de crédito estava bloqueado! Essa tinha sido a única providência que eu não tinha tomado antes de viajar, avisar o gerente da minha viagem. E eu já havia usado o cartão durante a viagem, então entrei no modo "não precisei até agora, não vai acontecer nada", que já tinha visto e criticado intimamente no outro. Mas o fato é que fiquei sem o cartão no restante da viagem. Teste para minha capacidade de arrumar soluções - comecei a pensar que tipo de negociação poderia fazer com o gerente do hotel, lavar louça, arrumar os quartos, enviar a grana quando chegasse ao Brasil... Por sorte (ou organização, ou previdência) tinha solicitado o desbloqueio da função débito, que até aquele momento não tinha sabido como usar (achava que poderia fazer compras no débito na moeda local, mas não era isso). Como não tinha outra alternativa, fui a um caixa eletrônico ali perto e tentei sacar com o cartão de débito. E deu certo: saquei em pesos chilenos. Resolvi então sacar no outro dia (respeitando o limite de saque diário, de 200 mil pesos) toda a grana que precisasse para pagar o hotel, antes que tivesse outra surpresa.Também visitei a linda igreja de San Pedro, do século XVI, com teto rústico de madeira, grossas paredes de adobe pintadas de branco e largas portas azuis. Duas freiras arrumavam o lugar. Ali chorei pela segunda vez na viagem, de novo pela sensação do "estou onde queria estar", mas também de gratidão e por estar em um lugar com séculos de história tão bem conservado.
Por volta das 16h30, saí para o Valle de la Luna, com o pessoal da TurisTour (o tal guia chato quase me deixou no hotel, sem nem sequer ter perguntado por mim na recepção - isso porque havia uma lista dos participantes do tour no balcão, e meu nome era o primeiro).
Seguimos para o lugar onde ficam Las Tres Marías, três pedras verticais assim batizadas pelo padre-arqueólogo Gustave Le Paige, que tem um museu com seu nome em San Pedro. Para mim, uma das pedras lembrou mais a Vitória de Samotrácia.
O passeio do outro dia começou mais cedo - fui ao Salar do Atacama, onde fica a reserva de flamingos. No ônibus, uma ameaça à minha felicidade: o compartimento do cartão SD da câmera estava aberto! Esqueci o cartão no computador! Mal pude acreditar que tinha feito isso, mas ainda perguntei à guia se haveria em algum povoado por onde passaríamos uma loja que vendesse câmeras descartáveis ou cartões. Ela lamentou, e disse que não. Só me restou me conformar com a distração/burrice. Mas não fiquei pensando nisso, e sim em como teria o privilégio de estar ali, naquele lugar maravilhoso, vendo tudo com meus próprios olhos.
Em Toconao, com exceção das lhamas nas ruas (apaixonadas pelo nosso motorista, don Roberto) e de uma pobre igreja com teto de madeira de cactus e casas feitas com pedra vulcânica, pouco havia para ver. Fomos então atrás dos flamingos, que não nos deram a menor bola, em suas lagunas especulares no meio de um deserto de pedra e sal, com o horizonte se perdendo em vulcões distantes. A paisagem é encantadora, e a grama salada que resiste ao sal dá provas de vida no deserto (viu, mãe?).
Almoçamos no povoado de Socaire, onde já havíamos encomendado nosso almoço de passagem. Achei que ia tomar a tal sopa de amendoim, mas já havia acabado. Tomei uma sopa de verduras, e comi uma tortilla vegetariana, bem assim-assim. Ali em Socaire era possível ver o sistema de canais que capta a água dos Andes e um pouco da cultura de terraços agrícolas, que segundo nossa ótima guia, Virginia, dão nome à Cordilheira, os andenes, destruídos pelos espanhóis. Virginia também nos disse que a torre do sino separada da igreja é uma homenagem ao deus que habita o vulcão.
Ali em Machuca percebi como uma subidinha de nada (para ver a igreja, em uma pequena colina) quando se está a mais de 4.000 metros do nível do mar é extenuante!
Pelo caminho, vimos zorros (pequenas raposas), vicunhas, lhamas. Alguns até se aproximavam mais do ônibus e de outros carros, provavelmente esperando ganhar alguma comida.

De volta para Santiago, e depois para São Paulo (quantos santos guiaram essa viagem!), completamente apaixonada por San Pedro do Atacama e pelo deserto (não terá sido também pela beleza do deserto que o demônio o escolheu para tentar Cristo? tenho minhas dúvidas após essa viagem).Desde o alto: o impacto da visão do deserto, de Calama a San Pedro; comidinhas gourmet em San Pedro; restaurante-bar descolado, La Estaka; pão chileno; um canto da Casa de Don Tomás; despertar da cidade dos perros; Igreja de San Pedro do Atacama; feira local e interior da Fundación Artesanías de Chile; torta tres leches, delícia; salmão mezzo cru, mezzo cozido; batizado das botas; incrível Valle de la Luna; Tres Marias; Valle de la Muerte; rosto na estrada; pôr do sol visto da Piedra del Coyote; Toconao com lhamas; será que é salgado?; Guillermo e Blanca, dois milagres chilenos; laguna Miñiques; na reserva de flamingos low-profile; na puna; nos Geysers del Tatio; termas; frio, muito frio; fantasmagoria; grafite altiplánico?; povoado de Machuca; mais lhamitas; Museo Gustave Le Paige, em San Pedro do Atacama.
sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014
Com as bênçãos de Pablo - Santiago e Isla Negra
Viajar é sempre uma boa ocasião para deitar certezas fora. Sem dó. Das grandes às mais mesquinhas, como acreditar que Santiago é menor do que é. Ou que existe mesmo uma grande unidade latino-americana. Não: Santiago é gigante, e os chilenos são cheios de particularidades. Que bom, me enganei!
Primeira vista ainda no avião: a Cordilheira do Andes. Que outra recepção eu poderia querer? Mas logo a impressão de que Santiago se parecia com Mendoza (estão na mesma linha, praticamente) foi sendo abandonada diante do tamanho da cidade.
O ar é bem seco, o sol estava forte, mas praticamente eu não suava, o que foi ótimo para perambular.
No primeiro dia, demorei um pouco a entender o que me diziam - começou aí a cair a ideia de que todo hispano-americano fala do mesmo jeito. Nada a ver com o jeito portenho de falar, nada do jeito europeizado dos argentinos. Em Santiago, todo mundo parece ter pelo menos uma pitada de sangue indígena. Achei, por isso, que todo mundo ia achar que eu era chilena, pelos olhos puxados.
Só mais tarde, quando saí pra comprar mantimentos, achei uma cafeteria bem boa, numa rua relativamente próxima - lá acabei jantando um sanduíche com prosciutto, queijo e rúcula. E tomei pela primeira vez uma limonada mais "temperada", com menta. Depois vi que é algo bem comum, limonada com menta, gengibre e até pimenta. Ótima!
Há muitos minimarkets por Santiago - são caríssimos! Eles se aproveitam da demanda quando os supermercados estão fechados e metem a faca. Se puder, evite - além do quê, podem rolar contas estranhas e trocos errados.



Aliás, pouco se fala de Violeta e muito se fala de Pablo. Um dos dias em Santiago foi dedicado a ir até Isla Negra. Pela internet, busquei o site de uma empresa cujos ônibus vi em toda parte, a Turistik, e então um passeio para Isla Negra, que fica no caminho para Valparaíso (que não tive a menor vontade de conhecer). Escolhi então o passeio Isla Negra+vinícola. Paguei com cartão de crédito e fui imprimir o comprovante em um cibercafé na vizinhança (ainda estou encantada com a praticidade da tecnologia, quando ela não falha).
Ainda em Isla Negra, almoçamos em um restaurante bem turístico, com comida mais ou menos. Nem vale a pena registrar o arroz com mariscos meio sem sal cujo nome esqueci.Seguimos para a vinícola Matetic, fundada por imigrantes croatas que chegaram ao sul do Chile no século XIX, para criar gado. Os negócios foram se diversificando, e entre eles está a produção de vinhos. A vinícola é orgânica e biodinâmica, ou seja, utiliza-se dos ciclos naturais, do relevo e da ajuda de pequenos animais (ovelhas, galinhas) para acabar com as pragas. O lugar é lindo, enorme - até me lembrei um pouco da vinícola chiquérrima visitada em Mendoza, mas a chilena é cheia de vida, literalmente orgânica.
Desde o alto: os Andes vistos na chegada a Santiago; limonada com menta; misteriosa carta sob a porta do apart!; charme decadente do Centro; "O" ceviche de La Vega; leche asada, deliciosa descoberta; peças do Museo del Arte Precolombino; fortuita feira de livros; Catedral de Santiago, onde silenciei e chorei; no Cerro San Cristóbal; chevice mixuruca e vistas do restaurante Giratório; mote con huesillos no Cerro Santa Lucía; belíssimo Museo de Bellas Artes; guardião do Centro Cultural La Moneda e interior do centro; eu, feliz, ele, Pacífico; lindezas de Isla Negra; instalações da vinícola Matetic e meus colegas brasileiros e a guia Ingrid; cantores líricos no Paseo Huerfanos.

