Outro dia, vi que a PUC-RS, onde fiz meu curso de gastronomia lato sensu, estava oferecendo um minicurso do Luiz Antonio Assis Brasil de escrita literária. Oba, pensei, mais um curso para ir afinando ideias, ainda mais de um professor desse quilate, e tal. Também ganhei de Guga o livro do renomado professor, Escrever ficção, para incrementar minhas leituras, junto com Francine Prose, Daniel Pennac, James Wood. Um brasileiro, ora.
Maravilha, comecei o curso, um pouco lento no início (gosto mais do livro, já sei), mas a coisa foi se constituindo. No outro dia, ao prosseguir na plataforma, selecionei uma aula mais à frente, sem querer, e tive um choque com os comentários feitos pelo professor sobre a literatura atual. Ele disse, num tom despeitado, que tudo hoje é sobre gerações de mulheres, histórias de abuso e homens enfraquecidos. Que "está na moda". Epa.
Interessante é que ele, para dar um exemplo de uma grande obra, tenha citado O tempo e o vento, que, ora vejam, tem gerações de mulheres, histórias de abusos e alguns homens enfraquecidos - embora conte com as presenças dos heróis fundantes do Rio Grande do Sul, reais e imaginários.
Comentei isso com Guga, e ele disse que só tem visto livros de mulheres, pouco encontrando autores homens. Tenho certeza de que não, de que o que acontece é que ele nunca tinha visto tantas mulheres escrevendo e ganhando destaque. Prova disso é o que a Flip mostrou este ano - muitas mesas com mulheres. E aqui volto ao comentário ranzinza de Assis Brasil.
Algumas das autoras da Flip (que são só uma gota no oceano, claro) realmente falam em seus livros sobre abuso, de vários tipos. Provavelmente, porque não integram somente suas experiências, mas a da maioria das mulheres. Falar de outras gerações é uma ferramenta para entender a sua situação no mundo, o "estado das coisas" - até porque muitas delas se repetem para as mulheres. E quando essa "revisão" acontece, os homens ainda presos ao machismo, reais ou não, perdem força. Como Assis Brasil gosta de repetir, "simples assim".
Eu já me perguntei se haverá um dia em que as escritoras e os escritores negros possam se livrar da experiência de racismo e deixar de falar dela. Nem todas e todos falam, é claro. Mas um número suficiente o faz, a ponto de chamar a atenção de alguém que não sofre racismo da mesma forma - e isso é fundamental. O mesmo pode ser dito das mulheres de todas as raças e classes - nem todas falam de abuso, mas várias falam, enquanto quase autor homem (branco) nenhum menciona esse tipo de acontecimento. Aliás, homens brancos bem nascidos parecem muito mais livres para abstrair, até fabular. Ao restante da humanidade, sobra a realidade, em matizes de dureza associados a gênero, raça e classe social.
O efeito que se deseja nesses livros "de mulher" é justamente o de choque de realidade em quem não vive essa realidade mais dura. Que mais pessoas possam ecoar o que disse, sabiamente, Jamil Chade no encontro com as Juristas Negras: que ele não irá mais participar de mesas em que não haja mulheres, sobretudo mulheres negras. Nós, mulheres, não esperamos menos que isso.