terça-feira, 26 de agosto de 2025

Reaproveitamento chique: presunto cru

Ainda tinha presunto cru do meu aniversário - delícia, mas haja sódio. De todo jeito, não ia jogar fora, com o preço das coisas! 
Tinha massa de pizza congelada, comprei uma burrata, usei na pizza, parte com pesto, parte com o presunto. O que restou do presunto ainda foi compor uma salada (e eu não sou boa de salada) delícia com cream cheese, tomate, rúcula e pesto. E azeite Verdenso, que comprei na oferta, uma sorte em horinhas de descuido.   

quinta-feira, 21 de agosto de 2025

Livros "de mulher"?

Outro dia, vi que a PUC-RS, onde fiz meu curso de gastronomia lato sensu, estava oferecendo um minicurso do Luiz Antonio Assis Brasil de escrita literária. Oba, pensei, mais um curso para ir afinando ideias, ainda mais de um professor desse quilate, e tal. Também ganhei de Guga o livro do renomado professor, Escrever ficção, para incrementar minhas leituras, junto com Francine Prose, Daniel Pennac, James Wood. Um brasileiro, ora.
Maravilha, comecei o curso, um pouco lento no início (gosto mais do livro, já sei), mas a coisa foi se constituindo. No outro dia, ao prosseguir na plataforma, selecionei uma aula mais à frente, sem querer, e tive um choque com os comentários feitos pelo professor sobre a literatura atual. Ele disse, num tom despeitado, que tudo hoje é sobre gerações de mulheres, histórias de abuso e homens enfraquecidos. Que "está na moda". Epa. 
Interessante é que ele, para dar um exemplo de uma grande obra, tenha citado O tempo e o vento, que, ora vejam, tem gerações de mulheres, histórias de abusos e alguns homens enfraquecidos - embora conte com as presenças dos heróis fundantes do Rio Grande do Sul, reais e imaginários. 
Comentei isso com Guga, e ele disse que só tem visto livros de mulheres, pouco encontrando autores homens. Tenho certeza de que não, de que o que acontece é que ele nunca tinha visto tantas mulheres escrevendo e ganhando destaque. Prova disso é o que a Flip mostrou este ano - muitas mesas com mulheres. E aqui volto ao comentário ranzinza de Assis Brasil.
Algumas das autoras da Flip (que são só uma gota no oceano, claro) realmente falam em seus livros sobre abuso, de vários tipos. Provavelmente, porque não integram somente suas experiências, mas a da maioria das mulheres. Falar de outras gerações é uma ferramenta para entender a sua situação no mundo, o "estado das coisas" - até porque muitas delas se repetem para as mulheres. E quando essa "revisão" acontece, os homens ainda presos ao machismo, reais ou não, perdem força. Como Assis Brasil gosta de repetir, "simples assim". 
Eu já me perguntei se haverá um dia em que as escritoras e os escritores negros possam se livrar da experiência de racismo e deixar de falar dela. Nem todas e todos falam, é claro. Mas um número suficiente o faz, a ponto de chamar a atenção de alguém que não sofre racismo da mesma forma - e isso é fundamental. O mesmo pode ser dito das mulheres de todas as raças e classes - nem todas falam de abuso, mas várias falam, enquanto quase autor homem (branco) nenhum menciona esse tipo de acontecimento. Aliás, homens brancos bem nascidos parecem muito mais livres para abstrair, até fabular. Ao restante da humanidade, sobra a realidade, em matizes de dureza associados a gênero, raça e classe social. 
O efeito que se deseja nesses livros "de mulher" é justamente o de choque de realidade em quem não vive essa realidade mais dura. Que mais pessoas possam ecoar o que disse, sabiamente, Jamil Chade no encontro com as Juristas Negras: que ele não irá mais participar de mesas em que não haja mulheres, sobretudo mulheres negras. Nós, mulheres, não esperamos menos que isso. 

Organizar livros para organizar a vida

Provavelmente foi na minha primeira viagem a Recife que, visitando a irmã de minha avó, tia Edna, e sua família, ganhei um livro que teria pertencido a meu pai. Tio Luís, meu tio-avô, veio, todo misterioso e cheio de pompa, dizer que ia me presentear com o livro de um grande homem - no caso, meu pai. O próprio.
Era uma coletânea de contos russos. Já era um exemplar velho quando recebi de tio Luís, letras pequenas, papel amarelado - não estimulava muito a leitura. Mas guardei, como uma espécie de relíquia, uma herança indireta - e a única - de meu pai. 
Na última semana, resolvi limpar e reorganizar meus livros - desde a mudança, estavam dispostos em uma ordem ínfima, dificultando encontrar o que eu queria, mesmo sendo uma estante de literatura e outra de assuntos diversos. A limpeza também não estava lá essa beleza toda, então me dispus a pegar um a um para limpar. A umidade da Bahia não deu trégua a alguns, como eu imaginava.
Mas qual não foi minha surpresa ao ver cair um pozinho escuro justamente do livro de contos russos? Dentro dele, os cupins já haviam aberto caminho. Aparentemente, só ele recebeu a visita, ainda bem. Achei sintomático. De todo jeito, ficou uma herança melhor e mais efetiva, o apreço pelos livros, cada um com sua maneira de se relacionar com eles. 

quinta-feira, 14 de agosto de 2025

Brinde e luta

Nada como brindar antes de ir à luta. Assim foi o encontro promovido pelas Juristas Negras, organização capitaneada pela promotora pública Lívia Santanna Vaz, no Goethe Institut na última terça, com a presença luxuosa de Jamil Chade, um dos jornalistas e comentaristas políticos e de direitos humanos mais confiáveis da atualidade e desde há muito. Teve aluá, abará, cocadinha e cervejinha. Teve gente interessante e interessada. Teve trégua de são Pedro. E teve a conversa fundamental de Lívia e Jamil, trazendo tantas verdades em meio à distopia, lá nos Estados Unidos e cá no Brasil. 
Claro que dizer que devemos nos unir pela democracia não basta. Como chegamos a isso? Como promovemos a união? Ainda acho que precisamos tomar as formas de comunicação. Redes, impressos, boca a boca, as ruas. Não podemos continuar reféns da comunicação torta e "boateica" da extrema direita.  
Enquanto isso, tietei Lívia e Jamil, tão disponíveis os dois. E sim, me orgulho de ter estado literalmente no meio de quem luta por justiça e democracia neste país, neste mundo.  

segunda-feira, 11 de agosto de 2025

Carimbó

Desde a primeira vez que vi alguém dançando carimbó, essa mistura de ritmos indígenas, africanos, caribenhos e tão brasileira, fiquei apaixonada. Senti que era a pura representação do direito de todo mundo à alegria, à dança, à festa. É claro que há os melhores dançarinos, como em toda dança, mas o carimbó convida primeiro a se alegrar, a experimentar, para depois saber como se faz. Como crianças, somos chamadas e chamados para a roda, para sentir a pulsação, para ver a energia subindo pelos pés e percorrendo todo o corpo até fazer o sorriso desabrochar.
Foi exatamente assim na oficina de lundu e carimbó na Escola de Dança da UFBA. Beatriz e Maya, jovens que vieram de Belém para o congresso de antropologia, não só trouxeram a dança, mas também o legado dos mestres e mestras paraenses. Que lindo vê-las, e mais algumas paraenses presentes, dançando com todo prazer e orgulho! Lembrei de Chico César dançando com uma violoncelista do Quinteto de Cordas da Paraíba, uma leveza, uma alegria contagiante.
E foi essa alegria que também contagiou o grupo na sala de dança na última sexta. Sem a preocupação de saber dançar, e sim dançar para saber. Não se intimidar pelo medo da imperfeição, nunca, nunca. 

A sereia e o direito à imperfeição

Tinha marcado com Liu de ir ao BazaRozê e vi que haveria uma oficina de modelagem em argila. A oficina foi muito concorrida, mas conseguimos garantir nossos lugares. 
As bolotas de argila já estavam prontas. As mesas tinham cerca de 8 pessoas. Logo todos estavam concentrados em seus trabalhos, mas de uma forma apressada, como se estivéssemos participando do Masterchef. Desacelerei para curtir a textura da argila, todas as possibilidades nas minhas mãos. A luz era pouca, o que dificultou enxergar as imperfeições da minha sereia. 
Isso é algo em que tenho pensado muito - a dificuldade de se aceitar a imperfeição. Não minha, que já a assumi como parte de mim, incompleta e imperfeita. Sobretudo por influência das redes sociais, e antes da cultura da imagem, cada vez mais gente acaba não fazendo coisas por prazer, mas somente para atestar uma suposta perfeição. Só cantar se garantir 100% de afinação, só dançar se for para arrasar na coreografia, usar a IA para conceber um retrato ou um filtro para "corrigir" uma foto. 
Talvez por causa da idade, cada vez menos a perfeição tem me interessado. Não que eu não seja assombrada volta e meia pela necessidade de ser especialista em alguma coisa - e não sou em nada, no final das contas -, mas realmente vejo hoje quanto tempo se perde em busca da perfeição, e o quanto isso nos paralisa. E a vida, afinal, vai passando, caminhando para seu inexorável fim. 
Quando a sereia ficou um pouco mais seca, as imperfeições ficaram mais claras. Mas mais verdadeiras também. Nem por isso, ela deixa de estender sua mão que concede presentes, nem o abebé que reflete quem somos e também protege dos adversários. Nem por isso, ou justamente por isso, ela deixa de cantar, bailar, encantar, tecer histórias. 

domingo, 20 de julho de 2025

Descasar também é coisa de cinema

Assisti outro dia a um filme indicado por Dani, Mon roi, da diretora francesa Maïwenn. Poderia dizer que é um filme de terror - Georgio, personagem de Vincent Cassel, é um restaurateur charmoso e abusivo que se relaciona com a advogada Tony, vivida por Emmanuelle Bercot. Ele decide tudo no relacionamento: ter um filho, o nome da criança, deixar a namorada/mulher no apartamento enquanto vai morar em outro onde recebe a ex. Georgio é claramente tóxico, mas sedutor, se faz de vítima, um puer aeternus típico, e Tony não consegue se desvencilhar, e até o fim ficamos presas ao filme, sem fôlego, à espera de que ela consiga ir embora. Terrível! Há quem diga que Maïwenn se inspirou na sua história com Luc Besson. 
Isso me fez pensar em outros filmes sobre términos difíceis de casamento após relacionamentos tóxicos. História de um casamento, de Noah Baumbach, traz o casal Nicole e Charlie, vividos pelos charmosos Scarlett Johansson e Adam Driver, vivendo o fim do casamento de forma progressivamente dolorosa. Nicole também abre mão de seus interesses em prol da relação - ela, uma atriz em ascensão, deixa tudo para cuidar da família com o marido diretor, que não abandona nem um milímetro de sua carreira. A advogada Nora, interpretada pela ótima Laura Dern, ajuda Nicole a enxergar a realidade. 
A esposa, filme de Björn Runge, traz Glenn Close no papel de Joan, mulher de Joe, premiado escritor que acabou de ser premiado com o Nobel de Literatura. É exatamente a ocasião em que Joan revê seu casamento, sua dedicação irrestrita que a levou a suplantar seu próprio talento e tornar o marido um escritor reconhecido. E decide abandonar o marido, no meio da cerimônia de premiação. Descobrimos, então, que era ela quem escrevia os livros de Joe, que também tem um ego gigante, como os companheiros das outras películas. 
Acabei hoje revendo A lula e a baleia, também de Noah Baumbach. Impressionante como esse filme de 2005, vinte anos portanto, é totalmente atual. Não há nada nele que possamos chamar de "datado", o que, no fundo, é triste: o machismo, a cultura patriarcal, o marido que manipula, que coloca para baixo para não se sentir inferior e que não suporta a ascensão da mulher - de novo, um casal de escritores. A personagem de Jeff Bridges, o marido, ainda procura alienar os filhos - o mais velho, que busca aprovação paterna, cede, mas o pequeno saca melhor a dinâmica familiar. Walt, o mais velho, tem o pai como exemplo e, ao ser desmascarado por usar uma música do Pink Floyd como sua, diz que sentia que poderia ter escrito a música - algo que seu pai provavelmente diria, no alto de sua arrogância. As mulheres são rotuladas por Walt e seu pai, homens que não amam mulheres. Mas Walt pode ter sua redenção, depois de se lembrar de ocasiões em que teve momentos especiais com a mãe e o pai nunca estava presente. E a mãe, Joan (outra Joan), vivida por Laura Linney, também já deu seu passo rumo a uma vida autônoma. 
A questão nesses filmes não é o dano do casamento em si. Todos eles tratam, na verdade, de homens narcisistas, que colocam as parceiras como apêndices, apoios de seu sucesso, e só. São incapazes de partilha, de se alegrar com as conquistas alheias. Cada vez mais temos visto a realidade de exaustão feminina nas telas - mas, diferentemente de Kramer vs Kramer, em que a mulher é retratada como a vilã que abandona o filho e o pai que, afinal, tem que fazer o básico e é visto como herói. 
Mesmo com tanto ultraconservadorismo hoje, seguimos dando um passo a cada dia, sem interromper a caminhada. Não importa quando, sempre é tempo de fazer o melhor. 

Também gregária

Gosto da minha companhia, graças à deusa. Mas também sou gregária. Se estou em grupo, participo. Claro que os diferentes grupos possibilitam isso ou não. 
Este semestre foi especialmente rico em vivências coletivas. As duas turmas que frequentei como aluna especial foram ótimas, e as aulas de fechamento de ambas seguiram a mesma linha. Senti muito afeto pelas pessoas e pude realmente fazer parte e me sentir ouvida. As imagens dos últimos encontros transbordam afetividade. Num deles, que seria on-line, algumas de nós resolvemos participar de forma híbrida, com café que teve lelê de fubá e acaçá, para fazer companhia às colegas que não puderam voltar para suas cidades - não preciso dizer mais. 
Como julho é meu mês, também me incluí em comemoração de aniversário na casa da ex-sogra, e ainda pedi bolo red velvet, perfeito! Que sorte a minha ter sido atendida! Depois, preparei um brunch em casa com amigos, dessa vez com bolo floresta negra, pães e frios, uma comilança com debates acalorados mas respeitosos. 
Uma fuzarca de vez em quando tem muito valor, ora se tem. Com comidinhas deliciosas, é puro exercício de comensalidade.   


 

Juliana e o direito de ir e vir a salvo

Fiquei tão consternada com a história de Juliana Marins, que morreu depois de cair em uma cratera na Indonésia que demorei a comentar qualquer coisa. Há muitas camadas nessa história - insegurança causada por turismo predatório (não da parte de Juliana, claro), insegurança das mulheres ao viajar, o encaminhamento dado ao resgate em se tratando de uma mulher latina e negra. A segunda autópsia, feita no Brasil a pedido da família de Juliana, mostra que ela morreu cerca de 32 horas depois da queda, na verdade, em uma segunda queda, escorregando pela cratera. Ela ficou mais de quatro dias ali. Morta havia mais de dois dias. Poderia estar viva se as medidas tomadas fossem as corretas. Claro que há muitos senões a ponderar. Mas o final da história de uma moça tão jovem, que sonhava em viajar o mundo com autonomia e segurança, foi terrível. 
Gostaria de ainda ver um mundo em que todas as Julianas possam ir aonde quiserem, sem medo de não voltarem para casa.  

domingo, 29 de junho de 2025

Jam no MAM, geleia à beira-mar

Por fim, fui. Ganhei uma cortesia de Samuel, colega da pós, e achei que era a hora. Realmente, é mágico estar à beira-mar, em pleno Solar do Unhão, ouvindo a passagem de som, vendo gente de todo tipo se ajeitando para assistir à miscelânea organizada, regida pelo ótimo Ivan Huol, criador do Microtrio e da Jam no MAM. Ainda por cima, teve um tom junino (e não choveu, presente de são Pedro), com direito a sanfona, que eu adoro. Teve Ângela Velloso, sampleando com a guitarra baiana, vixe, essa moça pode tudo! Bom demais. 
Carinho na alma com gosto de geleia, pois formiga estou.  

segunda-feira, 23 de junho de 2025

"Planejar para descaralhar"

Ontem, no perfil da Kiusam de Oliveira no Instagram havia um corte do programa Multipolar, do Michel Mamede, com a atriz Shirley Cruz. Eu não a conhecia, e fiquei encantada com o ensinamento deixado por ela, sobre a necessidade de "planejar para descaralhar", ou seja, chutar o balde com classe quando necessário. Ela contava o episódio de ter sido convidada para fazer uma cena em um filme da Anna Muylaert, que ela recusou, dizendo que a cena podia ser feita por qualquer atriz, e ela tinha muita energia a oferecer, um "útero para colocar na mesa". Como não se apaixonar? E a justificativa, segundo ela, é a de, apesar de precisar pagar boletos, ser necessário se impor - até quando ficaria fazendo "cenas"? Maravilhosa! O resultado foram alguns papéis como protagonista em filmes da própria Anna, inclusive o premiado e prestes a estrear A melhor mãe do mundo (prêmios de melhor atriz para Shirley, melhor roteiro e melhor fotografia no Cine PE e de melhor filme em festivais franceses). 
Hoje, em mais uma tentativa de receber por um trabalho feito há quase 3 meses, dei uma leve descaralhada. Já fui de descaralhar mais, mas a precarização dos trabalhos nos faz perder o élan, guardar as armas. No entanto, hoje resolvi que não, que ia dizer umas coisas. Da minha experiência e amor pela educação, do descaso e desorganização deles. Do cumprimento de prazos exíguos retribuído com falta de informações e adiamentos sem explicação. A resposta, muito pró-forma, veio só para ganhar tempo enquanto a editora faz o que quer. 
Em algum momento, provavelmente receberei o devido, mas a questão é fazer com que enxerguem a profissional por trás da troca de mensagens. Talvez não mude nada. Mas, para mim, é um primeiro passo antes de simplesmente dizer não, recusar o trabalho precário. Ainda chego a Shirley, mesmo depois dos 50. 
Nem sempre precisamos ser educadas não. Mas planejar é sempre bom, mesmo para chutar o balde.  
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sexta-feira, 20 de junho de 2025

Questões de classe(s)

Há alguns dias, fui assistir ao novo filme de Juliette Binoche, Entre dois mundos, do diretor francês Emmanuel Carrère. De cara, me lembrei de Dias perfeitos de Wim Wenders, por Carrère mostrar a rotina de trabalhadoras na limpeza de banheiros e cabines de navio. Claro, são duas propostas muito diferentes, o longa de Wim Wenders se assemelha a um haikai, tamanha sua capacidade de captar a poesia do cotidiano. O filme de Carrère pouco tem de poético, leva-nos num moto-contínuo de trabalho exaustivo junto com as mulheres contratadas por agências para limpar a sujeira alheia enquanto lidam com seus próprios dramas, a maioria deles produzido pela falta de recursos materiais e emocionais. Embora a gente torça para um real envolvimento da personagem de Binoche com suas colegas, a realidade fala mais alto, e ela não sobe novamente na balsa com elas depois de ter conseguido lançar seu livro, um sucesso, aliás, justamente a respeito daquelas trabalhadoras. A classe continua a determinar as distâncias, apesar do interesse "antropológico" da protagonista. 
Como se trata de um filme sobre as classes operárias, poderíamos lembrar também de Ken Loach, quase um E. P. Thompson das telas, outro britânico que traz os desvalidos para o centro da cena, nunca de forma redentora, mas dolorosamente solidária e sem atravessadores de ocasião. Mas, mesmo com a dureza da vida proletária traduzida pelos seus não atores, Loach mostra, como Carrère, que existem mesmo dois mundos separados, não mais proletários e patrões, mas explorados e exploradores. E ainda há quem queira reduzir tudo a questões de "identitarismo", quando o que temos é uma minoria interessada na manutenção da miséria para não abrir mão de seus privilégios. 
Que a arte, seja a de Carrère ou a de Loach, nunca nos deixe esquecer do que se trata.  

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Vento de maio, fogueiras de junho, fim do semestre

Semestre chegou ao fim. Tudo passando cada vez mais rápido. Mais conflitos no Oriente Médio, além do genocídio palestino. Maio trouxe muitas chuvas ao Brasil, especialmente no Sul, de novo. Pouco trabalho, mas pingando aqui e ali. Preocupações familiares. O desânimo é grande. Nunca foi tão necessário presentificar. Não ceder nem à ansiedade nem à depressão. Nunca foram tão necessárias a beleza e a solidariedade. Junho veio lembrar da necessidade de se aquecer, a si e coletivamente. Escolher sementes para o futuro próximo, ter consciência do caos para saber lidar. Manter-se no fluxo, não esquecer de respirar. 

domingo, 25 de maio de 2025

Não se entregue nunca

Desde que vi o anúncio do monólogo de Othon Bastos quis assisti-lo, ainda sem saber se viria para Salvador. Veio, e consegui ingresso para o ensaio aberto (não gratuito, mas 1/5 do valor do ingresso do Teatro do SESC - não há, penso, SESC como o de São Paulo, com valores tão acessíveis, e Salvador, com poucas casas de espetáculo, tem cobrado muito caro do público). 
Mesmo de um lugar muito distante do palco, na penúltima fileira do foyer, com joelhos encostando na cadeira da frente, valeu a pena ver esse ícone do cinema, da TV e do teatro aos 92 anos desfiando, por 2 horas, episódios de sua vida com a ajuda da Memória, interpretada por Juliana Medella, sabiamente escalada para dividir o palco mas também compartilhar deixas com o veterano. 
Houve momentos em que tive medo de que ele caísse ou se cansasse ou se esquecesse, de fato, mas ele foi aguerrido até o fim. Com sua voz potente, emocionou a todos, falando de suas primeiras experiências no teatro, como figurante mudo, de como o acaso o levou a grandes papéis, como Corisco em Deus e o Diabo na Terra do Sol, e como algumas vezes foi um "coadjuvante de luxo", caso de sua participação em Central do Brasil. Homenageou amigos, declamou trechos de peças, agradeceu à sua Bahia natal. Foi ovacionado por muitos minutos, merecidamente, plantando na gente a semente da não desistência, a sorrir em cada novo dia. Não tem sido fácil, Othon, mas sorrimos com o seu exemplo e seguimos. 

quinta-feira, 15 de maio de 2025

Antônio e José

Sempre que eu via Pepe Mujica, me lembrava de meu avô, embora seu Antônio fosse um tipo mais bonachão e Pepe, um observador filosófico da vida e do mundo.
Ontem, Pepe partiu, após uma longa luta contra o câncer. Faria aniversário por esses dias, 90 anos. Não pôde esperar. Avisou a todo mundo que em breve partiria, e assim foi, sem dramas, apesar da nossa tristeza. Honras de estadista, mas principalmente de homem do povo. Já faz falta. 
Hoje juntei os dois, meu avôhai e Pepe, Antônio e José. Se se conhecessem, ah, como seria incrível esse encontro! Dois gigantes que não perderam tempo se lamentando, cada um a sua maneira. Gente que faz falta.

domingo, 4 de maio de 2025

Olha a veia que salta, olha a gota que falta

Fui assistir no feriado do trabalhador à montagem de Gota d'água da Companhia Baiana de Teatro Brasileiro, no Teatro Martim Gonçalves. Outro dia, houve a Medeia negra no campus de Ondina da UFBA, mas não consegui me programar para assistir. O fato é que, para sorte dos que amam o teatro, a heroína trágica de Eurípides não perde nunca sua importância. 
Embora já tivesse assistido a Medeia, com Juliana Galdino em 2005, no SESC Belenzinho, e no filme de Pasolini, com Maria Callas, eu ainda não tinha visto, mesmo conhecendo o texto de Paulo Pontes e Chico Buarque, nenhuma montagem de Gota d'água. A atuação de Evana Jeyssen é visceral, como se espera de Joana-Medeia, mas é quase desesperada, no limite, sem perder, contudo, o controle corporal impressionante, como bem pontuou Liu. Evana e Augusto Nascimento dividem o palco, alternando os papéis de Joana e Jasão com o Coro de vizinhos e Creonte, num cenário enxuto, um círculo de areia, que é praia, rua, casa, tempo que escorre dos baldes-ampulhetas espalhados pelo urdimento, mas principalmente arena (feliz escolha etimológica) onde se dão os confrontos desamorosos. 
Fiquei tão mexida que fui rever Callas no filme de Pasolini e acabei encontrando uma versão japonesa, do diretor Yukio Ninagawa, encenada no Epidauro, imagine, na pura tradição do kabuki, portanto apenas com atores do sexo masculino. 
A trama da mulher que sofre por ser abandonada em um país estrangeiro depois de ter dado tudo ao amante tem muitas camadas, como dizemos hoje: ela é estrangeira duas vezes - depois de deixar Cólquida, a terra natal, para ficar com Jasão em Iolco e, então, quando fogem para Corinto depois de serem perseguidos pelos súditos de Pélias, rei de Iolco e tio de Jasão. Medeia é hostilizada por ser forasteira e por suas práticas de magia, que teriam ajudado Jasão a conseguir o Velocino de Ouro e a matar Pélias, que disputava com o sobrinho o trono de Iolco. Jasão, embora ele também estrangeiro, arranja casamento com a filha do rei de Corinto, Creonte, e abandona Medeia com seus dois filhos. Creonte exige que ela vá embora, ou seja, que siga sem lugar no mundo, desterrada. O final, nós conhecemos, e sempre há o desconforto, justificado, diante da decisão de Medeia, que tira de Jasão a única coisa que ela lhe dera que ainda o interessava - os filhos, a dinastia.
É um fato raro que mães matem os filhos - embora aqui e ali haja uma notícia assim, nada que se compare à quantidade assustadora de homens que matam ex-mulher e filhos -, e Medeia não trata apenas disso, embora seja o que nos choque à primeira vista. Para muitos, talvez essa trama ainda seja apenas uma reação extrema da mulher traída. Hoje, mais que nunca, o que vejo nela é a opressão feminina em pleno "século do ouro" ateniense. Impossível ouvir Chico Buarque, já que o mencionei, cantando "Mulheres de Atenas" e não ter um ranço dos atenienses machistas, que dominavam as mulheres como também os estrangeiros e os escravos, nenhum deles visto como "cidadão". Impossível assistir a Medeia e não pensar em como, até hoje, mulheres, por mais poderosas que sejam, dependem de que os poderosos de fato ditem os rumos de sua vida, limitando o exercício de sua cidadania. Na verdade, uma gota da raiva de Medeia/Joana, sem sequer derivar para a violência, é o suficiente, vem a calhar para mudar a realidade das mulheres. A gota que falta.

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