Não tenho lido tanto quanto gostaria, em função de muito trabalho sim, mas sobretudo por uma mente povoada de ideias que ainda não tomaram forma. Com tamanha ocupação mental, quase não sobra espaço para as ideias alheias fazerem eco em mim.
Mas então algum livro cai-me nas mãos e o encantamento vem como um raio. Ou então me deixo enganar por uma sinopse qualquer, por uma capa, e acabo me decepcionando.
Exemplo de decepções recentes são os esquisitíssimos
Reprodução, de Bernardo Carvalho e
Diga a Satã que o recado foi recebido, de Daniel Pellizzari. O primeiro me chamou a atenção pelo fato de o narrador ser um blogueiro, mas a tentativa de imprimir um fluxo de consciência à narrativa deu com os burros n'água. Chato! Já o de Daniel Pellizzari foi indicado por um vendedor da Livraria da Vila, que agregou valor ao livro mencionando o fato de o autor ter um compadrio literário com Daniel Galera, de quem só li um livro mas já acho um dos grandes autores jovens do país. Pois o do xará não funciona - mil focos narrativos, um tom indefinido de piada e underground, uma confusão que só cheira a confusão. Chato 2!
De outro lado, há as paixões fulminantes. Como o livro que um colega editor me emprestou porque falei sobre minha curiosidade acerca de Valter Hugo Mãe, cujo nome acho tão poético. Ele não só elogiou o angolano criado em Portugal, como tinha um dos livros à mão. Comecei a ler na mesma noite
A máquina de fazer espanhóis, nada óbvio, lírico, irônico, intrigante e universal, como deve ser um bom livro.
Mas este é só um dos livros da minha fase África - de autores lusófonos, ou nascidos na África, ou que escolhem a África como cenário de seus romances (caso de
Equador, do português Miguel Sousa Tavares, que também assina
No teu deserto - pode nome mais lírico?).
As mulheres do meu pai tem um atrativo autobiográfico, além da brejeirice do charmoso angolano José Eduardo Agualusa. Ao Mia Couto que ganhei ainda não dei início, mas já sei que vou gostar, como gosto de tudo desse moçambicano. E já estou de olho no timorense Luis Cardoso e sua temática navegadora.
Eu iniciei a fase África de fato, embora já tivesse lido Mia Couto, com autores não lusófonos, Coetzee e Le Clézio (este joguei fora antes de terminar de ler, não pelo texto, mas por ter sido presente de uma pessoa nefasta - fora da minha casa, energia ruim!).
O diário de um ano ruim me aguarda a um canto, ainda não iniciado.
As estrelas da vez, porém, são os escritores de língua portuguesa, do português de Portugal, com seu lirismo, imagens tão reconhecíveis do lado de cá apesar de umas tantas diferenças. E nesses livros, em especial, quanto sol há! Quanto sol!
Encantamento com autores lusófonos e decepção com dois brasileiros contemporâneos
"com a morte, também o amor devia acabar. acto contínuo, o nosso coração devia esvaziar-se de qualquer sentimento que até ali nutrira pela pessoa que deixou de existir. pensamos, existe ainda, está dentro de nós, ilusão que criamos para que se torne todavia mais humilhante a perda e para que nos abata de uma vez por todas com piedade. e não é compreensível que assim aconteça. com a morte, tudo o que respeita a quem morreu devia ser erradicado, para que aos vivos o fardo não se torne desumano. esse é o limite, a desumanidade de se perder quem não se pode perder. foi como se me dissessem, senhor silva, vamos levar-lhe os braços e as pernas, vamos levar-lhe os olhos e perderá a voz, talvez lhe deixemos os pulmões, mas teremos de levar o coração, e lamentamos muito, mas não lhe será permitida qualquer felicidade de agora em diante. caí sobre a cama e julguei que fui caindo por horas, rostos e mais rostos colocando-se diante de mim, e eu por ali abaixo, caindo, sem saber de nada. quando, por fim, me levantei, estava a anos-luz do homem que reconheceria, e aprender a sobreviver aos dias foi como aceitar morrer devagar, violentamente devagar, à revelia de tudo quanto me pareceria menos cruel."
Valter Hugo Mãe - A máquina de fazer espanhóis