quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Ruído ao redor

Eu adorei o filme O som ao redor (2013), de Kleber Mendonça Filho, com o ótimo Irandhir Santos. Não sei se foi proposital que a captação de som das falas dos atores fosse abafada pelos ruídos ao redor, mas o fato é que isso contribui para a impressão realista do filme. Belezas da ficção.
Na vida real, um dos motivos para minha mudança de casa foi o barulho de uma obra nos fundos do prédio. Insuportável para quem trabalha em casa. Isso, somado ao calor infernal e à aridez da paisagem, foi mais do que suficiente para minha busca por outro bairro, que tivesse mais verde, qualidade de vida e silêncio.
Acho que o verde está garantido por ora, mas não o silêncio. Nem reclamo dos cachorros na vizinhança, que são muitos, mas vi que fugir das obras é impossível em São Paulo. Em meio ao infinito trabalho de indexação de conteúdos que estou fazendo (pelo menos, a nova casa é muito mais fresca), ouço a sinfonia de serras, coisas sendo demolidas, escavadeiras, vinda de todas as direções. Não há mais possibilidade de paz para quem vive nesta cidade: além da violência crescente, da intolerância, há o ruído ao redor - no fundo, como no filme, trilha sonora perfeita para o caos que nos cerca.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Necessário silenciar: no Deserto do Atacama


"Não tem nenhuma foto com gente, com cidade?", foi a pergunta da minha mãe enquanto via as cerca de 500 fotos (nem tinha me ocorrido editar, fazer um apanhado das Top 100, e só mesmo as mães para verem tanta foto parecida quase sem reclamar) tiradas na viagem para o Atacama. Olhei para ela espantada: DESERTO, mãe, DESERTO! Não tem que ter nada.

Na verdade, não tem nada e tem tudo. San Pedro do Atacama, por exemplo, coração do deserto homônimo, é, literalmente um oásis. A cidade cor de areia e pedra é linda como só pode ser uma cidade de areia e pedra. Pequenina, mas pródiga em serviços (bons serviços). Nas poucas ruas, encontram-se restaurantes gourmet e outros mais simples, agências de viagem, casas de câmbio, mercados, lojas de suvenires. Muitos, muitos turistas, especialmente europeus, chilenos e brasileiros. As casas de adobe, baixas, com telhado de palha, o chão de terra seca. E me senti na Bolívia, pois a população é predominantemente indígena (daí não ter curtido muito o artesanato local, que me lembrou a feira da República e os manufaturados bolivianos de sempre, mais toscos que alegres).
Para chegar a San Pedro, o mais fácil é tomar o voo para Calama, uma cidade nascida da extração de cobre, sem atrativos. De Calama a San Pedro, percorre-se mais 1h30min de estrada - há empresas de transfer no aeroporto, e vale a pena contratar ida e volta (22 mil pesos, quando apenas ida custa 13 mil pesos).
A estrada para San Pedro já atravessa parte do deserto, mas não prepara para o que está por vir. Cada paisagem tem uma atmosfera muito peculiar, e é só voltar a cabeça para ver uma coisa diferente. Talvez tenha sido esse o chamado do deserto: olhar em torno, para o aparente nada, para o aparente imutável, e perceber a transitoriedade das coisas, como o que era há pouco já não é mais.
Além disso, o deserto convida ao silêncio, como uma grande catedral. Chorei também na pequena igreja de San Pedro do Atacama, como chorei na ornamentada Catedral de Santiago, e no deserto entendi por quê - era o inapelável contato com o sagrado, esse sagrado que mora dentro de cada um e cujo contato opera milagres, transmutações, verdadeiras revoluções.
Bom, mas falemos da outra viagem, para "fora". Fiquei na ótima Casa de Don Tomás, com excelente atendimento, especialmente do simpático Ricardo. Bom café da manhã, quarto confortável com wi-fi, cama perfeita, com muitas e muitas camadas de cobertor - deve fazer muito frio no inverno. A equipe é muito prestativa e se dispõe a resolver tudo com rapidez. Lá me indicaram o serviço da TurisTour, agência que organiza passeios ao redor de San Pedro (tirando um guia folgado que encontrei duas vezes, os passeios foram ótimos, em bons veículos e com ótimos motoristas).
Os mais afoitos podem querer alugar um carro e se jogar no deserto, mas eu sugiro que contratem sempre um guia. Pelo que vi, as estradas levam a muitas trilhas não sinalizadas, pelas quais os ônibus das agências de viagens trafegam com desenvoltura. Mesmo que eu dirigisse e estivesse acompanhada, não me meteria pelas areias...
No primeiro dia, fui atrás da agência de viagens e programei três passeios a partir do dia seguinte (são muitos! difícil escolher, e o guia que comprei, para brasileiros, não deu conta de descrever as particularidades), e almocei num restaurante muito bom, ótimo custo-benefício, La Casona. Pedi um menú del día, que vem com três pratos (entrada, principal e sobremesa) por 7.500 pesos (claro que pedi café e suco, e a propina não estava inclusa, então o preço subiu para 12.000 pesos). A comida era uma delícia (pizzeta com creme de milho, cogumelos e rúcula, frango com batatas à provençal e milhojas com doce de leite), com sabor e apresentação gourmet, e pelo que soube o restaurante pertence a uma família que tem mais três estabelecimentos - cheguei a almoçar num outro, La Estaka, mais descolado, com cara de bar, mas não achei a comida à altura (o salmão não estava nem cru nem assado, eca! mas a sobremesa, torta tres leches, era ótima).
Aliás, San Pedro não é exatamente o lugar para comer peixe, já que fica longe da costa (um pouco como comer ceviche em Cuzco, depois de passar por Lima). O forte são carnes gordas, como porco e lhama, ou frango. Tudo com muito alho, pimenta, salsinha, uma delícia (não tive coragem de experimentar a lhama, depois de ter visto algumas tão de perto!).
Outra conclusão (talvez apressada) gastronômica: pão não é o forte dos chilenos. Tanto em Santiago quanto em San Pedro os pães são massudos, meio feinhos. Pensei logo no fato de não haver a ascendência italiana - e em seguida pensei como era bom que não houvesse, para que a gente possa provar outros sabores! Claro que o pão vinha quentinho para ser comido com vinagrete de tomate e cebola e um bom azeite, então tudo ficava bem.
Desde o primeiro dia, saquei que havia muitos cachorros de rua em San Pedro. Depois, conversando com a vendedora da Fundación Artesanías (foi em San Pedro que conheci primeiro a loja), ela me disse que os moradores chamam a cidade de "San Perro do Atacama", com toda razão. Há verdadeiras gangues de cachorros - mas só os vi brigando entre si, não latindo ou vociferando antipaticamente para os passantes, como vi no Vale do Capão. Não dá pra negar que eles dão à cidade um ar ainda mais pitoresco.
Como não faria nenhum passeio no primeiro dia (cheguei no meio da tarde), marquei uma visita a um suposto observatório. Parece que há dois na cidade, além do superprojeto ALMA, no meio do deserto, não aberto a visitas. O observatório aonde fui era na laje de um sueco que veio para a América do Sul há dez anos. Ele tinha dois telescópios grandes e pelo menos parecia conhecedor do assunto. O que dava para ver a olho nu, porém, era a mesma coisa que dava para ver no telescópio. Ainda por cima, achei o céu do Atacama menos deslumbrante que os céus do Brasil no interior e no litoral - no começo pensei mesmo que era um problema visual meu, mas depois confirmei a impressão com um casal de paulistas que também voltava para Calama no mesmo transfer. Então posso dizer o que poderia soar como blasfêmia não tivesse eu visto: nosso céu tem mais estrelas. Viva Gonçalves Dias! Nem rolou tirar fotos das estrelas do céu atacamenho, porque esqueci o tripé e também o tal sueco não estava curtindo minhas tentativas - cada vez que via o espocar do flash fazia um comentário "engraçadinho". Chato!
No outro dia, perambulei pelas ruas de San Pedro, pois meu primeiro passeio só sairia no final da tarde. Fotografei os perros, almocei e quando fui à loja da Fundación Artesanías descobri que meu cartão de crédito estava bloqueado! Essa tinha sido a única providência que eu não tinha tomado antes de viajar, avisar o gerente da minha viagem. E eu já havia usado o cartão durante a viagem, então entrei no modo "não precisei até agora, não vai acontecer nada", que já tinha visto e criticado intimamente no outro. Mas o fato é que fiquei sem o cartão no restante da viagem. Teste para minha capacidade de arrumar soluções - comecei a pensar que tipo de negociação poderia fazer com o gerente do hotel, lavar louça, arrumar os quartos, enviar a grana quando chegasse ao Brasil... Por sorte (ou organização, ou previdência) tinha solicitado o desbloqueio da função débito, que até aquele momento não tinha sabido como usar (achava que poderia fazer compras no débito na moeda local, mas não era isso). Como não tinha outra alternativa, fui a um caixa eletrônico ali perto e tentei sacar com o cartão de débito. E deu certo: saquei em pesos chilenos. Resolvi então sacar no outro dia (respeitando o limite de saque diário, de 200 mil pesos) toda a grana que precisasse para pagar o hotel, antes que tivesse outra surpresa.

Também visitei a linda igreja de San Pedro, do século XVI, com teto rústico de madeira, grossas paredes de adobe pintadas de branco e largas portas azuis. Duas freiras arrumavam o lugar. Ali chorei pela segunda vez na viagem, de novo pela sensação do "estou onde queria estar", mas também de gratidão e por estar em um lugar com séculos de história tão bem conservado.
Por volta das 16h30, saí para o Valle de la Luna, com o pessoal da TurisTour (o tal guia chato quase me deixou no hotel, sem nem sequer ter perguntado por mim na recepção - isso porque havia uma lista dos participantes do tour no balcão, e meu nome era o primeiro).
O visual do Valle de la Luna é realmente impressionante. Se ficamos em silêncio podemos ouvir o estalido das rochas de sal. Ali tive a noção de que o deserto é diferente em cada canto para o qual se olhe. No alto da Duna Mayor vê-se a estrada cinematográfica lá embaixo, um espetáculo para os olhos.
Seguimos para o lugar onde ficam Las Tres Marías, três pedras verticais assim batizadas pelo padre-arqueólogo Gustave Le Paige, que tem um museu com seu nome em San Pedro. Para mim, uma das pedras lembrou mais a Vitória de Samotrácia.
Depois fomos ao Valle de la Muerte, segundo o guia chamado assim erradamente, pois o mais provável era que se chamasse Valle de Marte (pelo visual, acho que o nome Vale da Morte é muito mais plausível). E então subimos à Piedra del Coyote para ver o pôr do sol, que demora bastante para acontecer, mas vale a pena apesar do vento cortante lá em cima. De brinde, um rosto formado pela estrada lá embaixo. E uma lição: não ir às dunas de bermuda, pois o vento forma um chicote de areia que não dá trégua. Em compensação, fiquei feliz de ter ido com minhas botinhas (embora as meias mais compridas fossem mais adequadas, para evitar a entrada da areia nos sapatos - a fricção da areia na pele machuca!), por fim devidamente batizadas. Voltamos a San Pedro já à noite, embora nem tenha percebido o tempo passar.
O passeio do outro dia começou mais cedo - fui ao Salar do Atacama, onde fica a reserva de flamingos. No ônibus, uma ameaça à minha felicidade: o compartimento do cartão SD da câmera estava aberto! Esqueci o cartão no computador! Mal pude acreditar que tinha feito isso, mas ainda perguntei à guia se haveria em algum povoado por onde passaríamos uma loja que vendesse câmeras descartáveis ou cartões. Ela lamentou, e disse que não. Só me restou me conformar com a distração/burrice. Mas não fiquei pensando nisso, e sim em como teria o privilégio de estar ali, naquele lugar maravilhoso, vendo tudo com meus próprios olhos.
E aí rolou o milagre (sincronicidade) - um casalzinho de chilenos se aproximou de mim, quando paramos no pobre povoado de Toconao, e o rapaz falou em português que se eu quisesse eles tirariam as fotos para mim e depois me enviariam por email. Guillermo e Blanca, bonitos como anjos. Dois fofíssimos, que mesmo que não me enviassem as fotos já tinham feito valer o dia com sua graça juvenil, sua curiosidade por meu país, o empenho em falar português comigo. Tenho certeza de que só aconteceu porque estava aberta a tudo, e não me lamentando porque havia esquecido um cartão, o que poderia estragar o dia. O melhor de tudo? Eles realmente enviaram as fotos, e assim tenho lembranças do lugar e de sua companhia.
Em Toconao, com exceção das lhamas nas ruas (apaixonadas pelo nosso motorista, don Roberto) e de uma pobre igreja com teto de madeira de cactus e casas feitas com pedra vulcânica, pouco havia para ver. Fomos então atrás dos flamingos, que não nos deram a menor bola, em suas lagunas especulares no meio de um deserto de pedra e sal, com o horizonte se perdendo em vulcões distantes. A paisagem é encantadora, e a grama salada que resiste ao sal dá provas de vida no deserto (viu, mãe?).
Deixamos os flamingos e atravessamos a puna e algumas quebradas para chegar às duas lagunas cercadas de vulcões, Miscante e Miñiques. Parecem uma montagem! Aliás, a paisagem circundante toda parece uma montagem, com o céu de um azul improvável e o tolar, a vegetação do capim florido amarelo tola, cujo colorido confere alegria à paisagem árida cortada por leitos secos de rio. Não se tem acesso às lagunas, para que a flora e a fauna sejam preservadas do perigoso homem. De longe víamos alguma vicunhas e gaivotas andinas, mas há raposas e felinos maiores, além de caranchos e águias por ali.
Almoçamos no povoado de Socaire, onde já havíamos encomendado nosso almoço de passagem. Achei que ia tomar a tal sopa de amendoim, mas já havia acabado. Tomei uma sopa de verduras, e comi uma tortilla vegetariana, bem assim-assim. Ali em Socaire era possível ver o sistema de canais que capta a água dos Andes e um pouco da cultura de terraços agrícolas, que segundo nossa ótima guia, Virginia, dão nome à Cordilheira, os andenes, destruídos pelos espanhóis. Virginia também nos disse que a torre do sino separada da igreja é uma homenagem ao deus que habita o vulcão.
O último dia de passeio foi dedicado aos Geysers del Tatio. A saída foi de madrugada - de novo com o guia chato, Gonzalo. Dessa vez, ele não me esqueceu no hotel. Reencontrei no passeio uma costa-riquenha e uma chilena que estavam no passeio ao Salar. Elas me deram balas de coca para superar o mal de altitude, e acho que de fato funcionou - depois uma garota que estava conosco me ofereceu chá de coca de sua garrafa. No final das contas, fiquei ótima, e uma pontadinha de dor de cabeça logo desapareceu - faz diferença que os passeios sejam organizados segundo a altitude: o mais alto, dos gêiseres, ficou para o final (fui dos 2.400m de San Pedro aos 4.200m do Tatio em três dias).
A paisagem dos gêiseres é outro papo. Uma fantasmagoria só, que dura poucas horas, pois quando o sol nasce a fumaça vai desaparecendo, à medida que a água, aquecida pelo magma subterrâneo, também esfria. As pessoas que vagavam atrás das nuvens de fumaça com leve cheiro de enxofre vão se tornando mais nítidas, e o sol empresta outra cor à paisagem, que de repente mostra seus verdes e amarelos debaixo do céu sempre incrivelmente azul. Por ali ficam as termas, cujas águas ultrapassam a temperatura de 30 graus, enquanto do lado de fora faz 5 graus negativos. Não entrei nas termas, não só por conta do frio, mas porque pensei na trabalheira que daria me secar depois e também no fato de estar sozinha (quem tomaria conta das roupas etc.). É o tipo de coisa a fazer em turma - e o que mais havia dentro d'água eram turmas.
Dali fomos para o povoado de Machuca, muito pobre. A única atração do local, uma igreja de adobe, estava fechada. Em lugar de explorar a visita à igreja (que certamente renderia bastante para a comunidade), os moradores oferecem um serviço tosco de lanches e uma ou outra senhora vende produtos de lã a preços absurdamente altos. De resto, não há nada para ver além de uma dúzia de casas de adobe.
Ali em Machuca percebi como uma subidinha de nada (para ver a igreja, em uma pequena colina) quando se está a mais de 4.000 metros do nível do mar é extenuante!
Pelo caminho, vimos zorros (pequenas raposas), vicunhas, lhamas. Alguns até se aproximavam mais do ônibus e de outros carros, provavelmente esperando ganhar alguma comida.
Chegamos a San Pedro em tempo de eu visitar o Museo Gustave Le Paige, em homenagem ao padre-arqueólogo belga que viveu muitos anos em San Pedro depois de ter servido em missões na África. Mantido pela Universidade do Chile, é até arrumadinho. Tem peças interessantes, inclusive vários exemplares de uma tábua para alucinógenos cuja réplica comprei na Fundación Artesanías, como artesanato típico do Norte do Chile. Também tem uma loja anexa do próprio museu, mas só abria às 15h (ainda bem!).
Também fiz o almoço mais mais-ou-menos de todos (em San Pedro), no Todo Natural, uma salada com meia dúzia de camarões, uma berinjela com proteína de soja um tanto insossa e de sobremesa um bolo trufado.
Arrumei minhas coisas, trabalhei (sim! fiz isso, graças ou por culpa do Frodo). No outro dia, tive só tempo de tomar café, fechar a mala e aguardar o transfer para Calama.
No avião, fiquei um tempão olhando pra paisagem lá embaixo, para guardá-la por mais tempo na retina.
De volta para Santiago, e depois para São Paulo (quantos santos guiaram essa viagem!), completamente apaixonada por San Pedro do Atacama e pelo deserto (não terá sido também pela beleza do deserto que o demônio o escolheu para tentar Cristo? tenho minhas dúvidas após essa viagem).












Desde o alto: o impacto da visão do deserto, de Calama a San Pedro; comidinhas gourmet em San Pedro; restaurante-bar descolado, La Estaka; pão chileno; um canto da Casa de Don Tomás; despertar da cidade dos perros; Igreja de San Pedro do Atacama; feira local e interior da Fundación Artesanías de Chile; torta tres leches, delícia; salmão mezzo cru, mezzo cozido; batizado das botas; incrível Valle de la Luna; Tres Marias; Valle de la Muerte; rosto na estrada; pôr do sol visto da Piedra del Coyote; Toconao com lhamas; será que é salgado?; Guillermo e Blanca, dois milagres chilenos; laguna Miñiques; na reserva de flamingos low-profile; na puna; nos Geysers del Tatio; termas; frio, muito frio; fantasmagoria; grafite altiplánico?; povoado de Machuca; mais lhamitas; Museo Gustave Le Paige, em San Pedro do Atacama.



sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Com as bênçãos de Pablo - Santiago e Isla Negra

Acho que fui pro Chile no momento certo. Não só por conta de uma série de mudanças externas importantes, mas porque ele merecia que eu estivesse mais inteira, mais desencanada, mais preocupada comigo mesma e com conhecê-lo, e mais nada além disso.
Viajar é sempre uma boa ocasião para deitar certezas fora. Sem dó. Das grandes às mais mesquinhas, como acreditar que Santiago é menor do que é. Ou que existe mesmo uma grande unidade latino-americana. Não: Santiago é gigante, e os chilenos são cheios de particularidades. Que bom, me enganei!
Primeira vista ainda no avião: a Cordilheira do Andes. Que outra recepção eu poderia querer? Mas logo a impressão de que Santiago se parecia com Mendoza (estão na mesma linha, praticamente) foi sendo abandonada diante do tamanho da cidade.
O ar é bem seco, o sol estava forte, mas praticamente eu não suava, o que foi ótimo para perambular.
No primeiro dia, demorei um pouco a entender o que me diziam - começou aí a cair a ideia de que todo hispano-americano fala do mesmo jeito. Nada a ver com o jeito portenho de falar, nada do jeito europeizado dos argentinos. Em Santiago, todo mundo parece ter pelo menos uma pitada de sangue indígena. Achei, por isso, que todo mundo ia achar que eu era chilena, pelos olhos puxados.
Mas qual! O pessoal sacava logo que eu era brasileira, e perguntava logo de onde. Elogiavam o Brasil, falavam da vontade de conhecer o país. E entrávamos no maior papo. Ou seja, viajei sozinha, mas praticamente não fiquei sozinha. Muita gente vinha puxar conversa, tanto chilenos, quanto gringos. Aos poucos, fui ficando tão à vontade que nos últimos dias as pessoas já se dirigiam a mim como se eu fosse chilena.
Logo me pus a perambular, mas vi que a cidade era muito maior do que eu supunha - e aquele mapa turístico que peguei no escritório de turismo às vezes mais confundia que ajudava. Percebi que tomar o metrô (que já vale como atração, pois é o melhor da América do Sul) era a melhor opção, pois há praticamente uma estação de metrô ao lado de cada atração turística. Isso para não falar que também no Chile os taxistas têm má fama - pelo jeito é um fenômeno global.
No primeiro dia, ainda perdida, comi um macarrão à bolonhesa (com lascas de cenoura, combinação ótima) num mesón bem simples que encontrei atrás do apart. Pela fome e pelo cansaço, achei delicioso. Logo vi que estava no centro, mas não no miolo efervescente, com cafés e restaurantes. Estava perto de uma rua de aviamentos, que nem tive tempo de explorar.
Só mais tarde, quando saí pra comprar mantimentos, achei uma cafeteria bem boa, numa rua relativamente próxima - lá acabei jantando um sanduíche com prosciutto, queijo e rúcula. E tomei pela primeira vez uma limonada mais "temperada", com menta. Depois vi que é algo bem comum, limonada com menta, gengibre e até pimenta. Ótima!
Há muitos minimarkets por Santiago - são caríssimos! Eles se aproveitam da demanda quando os supermercados estão fechados e metem a faca. Se puder, evite - além do quê, podem rolar contas estranhas e trocos errados.
Nesse primeiro dia, desmaiei de cansaço no apart, e quando acordei achei uma carta misteriosa sob a porta. Falava de uma multa a pagar porque o apartamento estava sendo usado como apart, o que tinha sido proibido pelo condomínio (!). Como tinha levado o Frodo (estava muito conectada dessa vez! menos com o celular), mandei logo um email pro dono do apart, com a foto da carta. Ele disse pra eu ficar tranquila, que não era para mim (óbvio! mas e se eu voltasse um dia e encontrasse minhas coisas na rua?). De todo jeito, resolvi não pensar no pior, mas por via das dúvidas não ficaria no mesmo apart quando retornasse a Santiago, na volta de San Pedro.
Nos outros dias, já recuperada, fui bater perna pela cidade. Chorei na Catedral de Santiago, andei muito para achar o mercado La Vega, mais popular (o Mercado Central é mais turístico, quase só tem restaurantes). Ainda não cheguei à conclusão de quantos mercados há em Santiago (contei 3, incluindo o Abastos, onde provei a deliciosa leche asada, sobremesa que lembra um flan, no box 218, da simpática Silvia, que adorou ter alguém com quem falar um pouco de francês), mas certamente o melhor ceviche que comi foi no La Vega, o melhor custo-benefício e realmente delicioso. O restaurante, Genesis, muito simples, mas limpo, com bom atendimento e ótimo preço (o enorme prato saiu por 8 reais, com bebida). Achei que teria tempo de voltar, mas a viagem acabou sendo curta para tanta coisa (boa desculpa para o bis).
Ainda tive a sorte de encontrar uma feira de livros usados, em homenagem a Nicanor Parra, na Universidad Mayor (de arquitetura e artes, em um lindo prédio com resquícios de art nouveau e estilo colonial) e comprar um livro de Ángel Parra, filho de Violeta, contando a seus netos o que foi o golpe de 1973. No mesmo dia, ainda subi de teleférico ao Cerro de San Cristóbal, a vista mais alta de Santiago, no bairro de Bellavista.
Conheci o maravilhoso Museo Chileno del Arte Precolombino, que tem peças incríveis da América Latina desde os primórdios, e uma seção só com peças do Chile. Bem organizado, ótimo acervo, prédio lindo e moderno. Me senti parte dessa cultura ancestral, especialmente nas semelhanças com a arte asiática e também africana. Já o Museo de Bellas Artes, num prédio belíssimo no bairro quase parisiense de Santa Lucía, estava em troca de exposição, portanto pouco havia a ver a não ser uma exposição da Geração 13, que achei meio desorganizada. Nesse bairro, fica o Cerro Santa Lucía, um dos oásis da cidade, onde tomei o clássico mote con huesillos, um néctar de pêssego com grãos de trigo e pedaços de pêssego desidratado (o trigo é meio insosso, mas a bebida é gostosa e refrescante). Entre um museu e outro, almocei no restaurante Giratorio, cuja peculiaridade é fazer um giro de 360 graus - e só: a comida é bem mais ou menos, e cara para a qualidade oferecida.
Na volta a Santiago, também fui ao Centro Cultural La Moneda, em um espaço ultramoderno, sob o Palacio de La Moneda, com uma exposição sobre design italiano, muito boa. O espaço conta com salas de exposição, cafés e lojas (inclusive uma da Fundación Artesanías de Chile, a melhor para comprar regalos, já que as peças têm certificado e o dinheiro é revertido para os artesãos; ótima qualidade e preço justo). Ali havia uma exposição sobre Violeta Parra, a única que encontrei, mas ela estava de mudança para outro lugar (parece que perto da embaixada da Argentina), pena, pena!
Aliás, pouco se fala de Violeta e muito se fala de Pablo. Um dos dias em Santiago foi dedicado a ir até Isla Negra. Pela internet, busquei o site de uma empresa cujos ônibus vi em toda parte, a Turistik, e então um passeio para Isla Negra, que fica no caminho para Valparaíso (que não tive a menor vontade de conhecer). Escolhi então o passeio Isla Negra+vinícola. Paguei com cartão de crédito e fui imprimir o comprovante em um cibercafé na vizinhança (ainda estou encantada com a praticidade da tecnologia, quando ela não falha).
O pessoal do transfer da Turistik quase me deixou no apart, depois de se atrasarem bastante (isso foi outra coisa que descobri: no Chile, não há muita colher de chá pra turista: contratou o serviço, corra, pois ninguém espera) - eu tinha subido ao apart para buscar o telefone da empresa quando eles chegaram. O ponto de encontro era o shopping Arauco, na parte chique da cidade. Para Isla Negra, fomos apenas três pessoas: eu, uma moça do interior de SP e um senhor carioca. A paisagem até lá lembra Mendoza sim, já que é uma outra região de vinícolas fora de Santiago.

A casa favorita de Pablo Neruda estava lotada. Era preciso esperar ser chamado (no caso, a guia) pelo alto-falante e tal. Dei uma passada na tienda, carésima, da Fundación Neruda. Bom, tive que comprar um livro com fotos da casa de Isla Negra (não é permitido fotografar lá dentro) acompanhadas de poemas de Neruda, coisa de 120 reais! Mas a visita à casa tinha que ser registrada de algum modo, pois é mesmo maravilhosa. Agora entendo como a inspiração natural de Pablito era alimentada diariamente, pela linda paisagem do bravio Pacífico e pelas lembranças - carrancas, garrafas, borboletas, besouros, livros, chapéus, conchas - que o cercavam. A cama de Pablo e Matilde estrategicamente posicionada para o nascer do sol, diante de dois janelões. O bar para os amigos, de frente para o mar. As gaivotas dançando contra o céu azulíssimo a ponto de parecer uma montagem. E o restante da viagem foram poemas dançando na minha cabeça, ressignificados, ecoantes.
Ainda em Isla Negra, almoçamos em um restaurante bem turístico, com comida mais ou menos. Nem vale a pena registrar o arroz com mariscos meio sem sal cujo nome esqueci.
Seguimos para a vinícola Matetic, fundada por imigrantes croatas que chegaram ao sul do Chile no século XIX, para criar gado. Os negócios foram se diversificando, e entre eles está a produção de vinhos. A vinícola é orgânica e biodinâmica, ou seja, utiliza-se dos ciclos naturais, do relevo e da ajuda de pequenos animais (ovelhas, galinhas) para acabar com as pragas. O lugar é lindo, enorme - até me lembrei um pouco da vinícola chiquérrima visitada em Mendoza, mas a chilena é cheia de vida, literalmente orgânica.
Fizemos a degustação de dois vinhos só, inclusos no pacote. Um branco ótimo, Chardonnay, e um blend de tintos assim-assim. Acabei comprando um Shiraz, El Corralillo (com cavalinho no rótulo!), que já tinha visto por aqui e ao qual não tinha dado tanto crédito. No final das contas, pelo preço, esperava mais (11 mil pesos - dava pra ter comprado uns 3 ótimos Cousino Macul no supermercado). Bom, valeu a experiência, como sempre.
Quando voltei a Santiago, fiquei, como disse, em outro apart, muito mais perto do agito central, inclusive mais perto de Santa Lucía (e com escritório no próprio prédio, o que me deu mais tranquilidade). Nessa volta estava totalmente chilena, e as pessoas já achavam que eu era local. Também tinha já soltado mais o verbo, o que faz uma baita diferença na comunicação. O novo endereço ficava ao lado de um supermercado grande, então comprei uns poucos vinhos (a mala já estava lotada, embora eu tenha dessa vez levado pouca roupa - nunca fiz uma mala em tão pouco tempo, e sem ter dormido, o que explica alguns esquecimentos). Ainda tive a sorte de ver um grupo de cantores líricos se apresentando na rua, no Paseo Huerfanos, perto de onde estava hospedada. Então pensei em como Santiago merecia mais uns dias de visita, já que agora é que estava se mostrando verdadeiramente para mim, ou eu é que estava conseguindo vê-la com olhos de íntima estrangeira.
De novo confirmei minha paixão por viajar. E já sonho com os outros destinos latino-americanos, brasileiros, europeus, asiáticos, com todas as oportunidades de mergulhar no mundo do outro e, nesse espelhamento, em mim mesma.


Desde o alto: os Andes vistos na chegada a Santiago; limonada com menta; misteriosa carta sob a porta do apart!; charme decadente do Centro; "O" ceviche de La Vega; leche asada, deliciosa descoberta; peças do Museo del Arte Precolombino; fortuita feira de livros; Catedral de Santiago, onde silenciei e chorei; no Cerro San Cristóbal; chevice mixuruca e vistas do restaurante Giratório; mote con huesillos no Cerro Santa Lucía; belíssimo Museo de Bellas Artes; guardião do Centro Cultural La Moneda e interior do centro; eu, feliz, ele, Pacífico; lindezas de Isla Negra; instalações da vinícola Matetic e meus colegas brasileiros e a guia Ingrid; cantores líricos no Paseo Huerfanos. 

Cabeceira

  • "Arte moderna", de Giulio Carlo Argan
  • "Geografia da fome", de Josué de Castro
  • "A metamorfose", de Franz Kafka
  • "Cem anos de solidão", de Gabriel García Márquez
  • "Orfeu extático na metrópole", de Nicolau Sevcenko
  • "Fica comigo esta noite", de Inês Pedrosa
  • "Felicidade clandestina", de Clarice Lispector
  • "O estrangeiro", de Albert Camus
  • "Campo geral", de João Guimarães Rosa
  • "Por quem os sinos dobram", de Ernest Hemingway
  • "Sagarana", de João Guimarães Rosa
  • "A paixão segundo G.H.", de Clarice Lispector
  • "A outra volta do parafuso", de Henry James
  • "O processo", de Franz Kafka
  • "Esperando Godot", de Samuel Beckett
  • "A sagração da primavera", de Alejo Carpentier
  • "Amphytrion", de Ignácio Padilla

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