sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Com as bênçãos de Pablo - Santiago e Isla Negra

Acho que fui pro Chile no momento certo. Não só por conta de uma série de mudanças externas importantes, mas porque ele merecia que eu estivesse mais inteira, mais desencanada, mais preocupada comigo mesma e com conhecê-lo, e mais nada além disso.
Viajar é sempre uma boa ocasião para deitar certezas fora. Sem dó. Das grandes às mais mesquinhas, como acreditar que Santiago é menor do que é. Ou que existe mesmo uma grande unidade latino-americana. Não: Santiago é gigante, e os chilenos são cheios de particularidades. Que bom, me enganei!
Primeira vista ainda no avião: a Cordilheira do Andes. Que outra recepção eu poderia querer? Mas logo a impressão de que Santiago se parecia com Mendoza (estão na mesma linha, praticamente) foi sendo abandonada diante do tamanho da cidade.
O ar é bem seco, o sol estava forte, mas praticamente eu não suava, o que foi ótimo para perambular.
No primeiro dia, demorei um pouco a entender o que me diziam - começou aí a cair a ideia de que todo hispano-americano fala do mesmo jeito. Nada a ver com o jeito portenho de falar, nada do jeito europeizado dos argentinos. Em Santiago, todo mundo parece ter pelo menos uma pitada de sangue indígena. Achei, por isso, que todo mundo ia achar que eu era chilena, pelos olhos puxados.
Mas qual! O pessoal sacava logo que eu era brasileira, e perguntava logo de onde. Elogiavam o Brasil, falavam da vontade de conhecer o país. E entrávamos no maior papo. Ou seja, viajei sozinha, mas praticamente não fiquei sozinha. Muita gente vinha puxar conversa, tanto chilenos, quanto gringos. Aos poucos, fui ficando tão à vontade que nos últimos dias as pessoas já se dirigiam a mim como se eu fosse chilena.
Logo me pus a perambular, mas vi que a cidade era muito maior do que eu supunha - e aquele mapa turístico que peguei no escritório de turismo às vezes mais confundia que ajudava. Percebi que tomar o metrô (que já vale como atração, pois é o melhor da América do Sul) era a melhor opção, pois há praticamente uma estação de metrô ao lado de cada atração turística. Isso para não falar que também no Chile os taxistas têm má fama - pelo jeito é um fenômeno global.
No primeiro dia, ainda perdida, comi um macarrão à bolonhesa (com lascas de cenoura, combinação ótima) num mesón bem simples que encontrei atrás do apart. Pela fome e pelo cansaço, achei delicioso. Logo vi que estava no centro, mas não no miolo efervescente, com cafés e restaurantes. Estava perto de uma rua de aviamentos, que nem tive tempo de explorar.
Só mais tarde, quando saí pra comprar mantimentos, achei uma cafeteria bem boa, numa rua relativamente próxima - lá acabei jantando um sanduíche com prosciutto, queijo e rúcula. E tomei pela primeira vez uma limonada mais "temperada", com menta. Depois vi que é algo bem comum, limonada com menta, gengibre e até pimenta. Ótima!
Há muitos minimarkets por Santiago - são caríssimos! Eles se aproveitam da demanda quando os supermercados estão fechados e metem a faca. Se puder, evite - além do quê, podem rolar contas estranhas e trocos errados.
Nesse primeiro dia, desmaiei de cansaço no apart, e quando acordei achei uma carta misteriosa sob a porta. Falava de uma multa a pagar porque o apartamento estava sendo usado como apart, o que tinha sido proibido pelo condomínio (!). Como tinha levado o Frodo (estava muito conectada dessa vez! menos com o celular), mandei logo um email pro dono do apart, com a foto da carta. Ele disse pra eu ficar tranquila, que não era para mim (óbvio! mas e se eu voltasse um dia e encontrasse minhas coisas na rua?). De todo jeito, resolvi não pensar no pior, mas por via das dúvidas não ficaria no mesmo apart quando retornasse a Santiago, na volta de San Pedro.
Nos outros dias, já recuperada, fui bater perna pela cidade. Chorei na Catedral de Santiago, andei muito para achar o mercado La Vega, mais popular (o Mercado Central é mais turístico, quase só tem restaurantes). Ainda não cheguei à conclusão de quantos mercados há em Santiago (contei 3, incluindo o Abastos, onde provei a deliciosa leche asada, sobremesa que lembra um flan, no box 218, da simpática Silvia, que adorou ter alguém com quem falar um pouco de francês), mas certamente o melhor ceviche que comi foi no La Vega, o melhor custo-benefício e realmente delicioso. O restaurante, Genesis, muito simples, mas limpo, com bom atendimento e ótimo preço (o enorme prato saiu por 8 reais, com bebida). Achei que teria tempo de voltar, mas a viagem acabou sendo curta para tanta coisa (boa desculpa para o bis).
Ainda tive a sorte de encontrar uma feira de livros usados, em homenagem a Nicanor Parra, na Universidad Mayor (de arquitetura e artes, em um lindo prédio com resquícios de art nouveau e estilo colonial) e comprar um livro de Ángel Parra, filho de Violeta, contando a seus netos o que foi o golpe de 1973. No mesmo dia, ainda subi de teleférico ao Cerro de San Cristóbal, a vista mais alta de Santiago, no bairro de Bellavista.
Conheci o maravilhoso Museo Chileno del Arte Precolombino, que tem peças incríveis da América Latina desde os primórdios, e uma seção só com peças do Chile. Bem organizado, ótimo acervo, prédio lindo e moderno. Me senti parte dessa cultura ancestral, especialmente nas semelhanças com a arte asiática e também africana. Já o Museo de Bellas Artes, num prédio belíssimo no bairro quase parisiense de Santa Lucía, estava em troca de exposição, portanto pouco havia a ver a não ser uma exposição da Geração 13, que achei meio desorganizada. Nesse bairro, fica o Cerro Santa Lucía, um dos oásis da cidade, onde tomei o clássico mote con huesillos, um néctar de pêssego com grãos de trigo e pedaços de pêssego desidratado (o trigo é meio insosso, mas a bebida é gostosa e refrescante). Entre um museu e outro, almocei no restaurante Giratorio, cuja peculiaridade é fazer um giro de 360 graus - e só: a comida é bem mais ou menos, e cara para a qualidade oferecida.
Na volta a Santiago, também fui ao Centro Cultural La Moneda, em um espaço ultramoderno, sob o Palacio de La Moneda, com uma exposição sobre design italiano, muito boa. O espaço conta com salas de exposição, cafés e lojas (inclusive uma da Fundación Artesanías de Chile, a melhor para comprar regalos, já que as peças têm certificado e o dinheiro é revertido para os artesãos; ótima qualidade e preço justo). Ali havia uma exposição sobre Violeta Parra, a única que encontrei, mas ela estava de mudança para outro lugar (parece que perto da embaixada da Argentina), pena, pena!
Aliás, pouco se fala de Violeta e muito se fala de Pablo. Um dos dias em Santiago foi dedicado a ir até Isla Negra. Pela internet, busquei o site de uma empresa cujos ônibus vi em toda parte, a Turistik, e então um passeio para Isla Negra, que fica no caminho para Valparaíso (que não tive a menor vontade de conhecer). Escolhi então o passeio Isla Negra+vinícola. Paguei com cartão de crédito e fui imprimir o comprovante em um cibercafé na vizinhança (ainda estou encantada com a praticidade da tecnologia, quando ela não falha).
O pessoal do transfer da Turistik quase me deixou no apart, depois de se atrasarem bastante (isso foi outra coisa que descobri: no Chile, não há muita colher de chá pra turista: contratou o serviço, corra, pois ninguém espera) - eu tinha subido ao apart para buscar o telefone da empresa quando eles chegaram. O ponto de encontro era o shopping Arauco, na parte chique da cidade. Para Isla Negra, fomos apenas três pessoas: eu, uma moça do interior de SP e um senhor carioca. A paisagem até lá lembra Mendoza sim, já que é uma outra região de vinícolas fora de Santiago.

A casa favorita de Pablo Neruda estava lotada. Era preciso esperar ser chamado (no caso, a guia) pelo alto-falante e tal. Dei uma passada na tienda, carésima, da Fundación Neruda. Bom, tive que comprar um livro com fotos da casa de Isla Negra (não é permitido fotografar lá dentro) acompanhadas de poemas de Neruda, coisa de 120 reais! Mas a visita à casa tinha que ser registrada de algum modo, pois é mesmo maravilhosa. Agora entendo como a inspiração natural de Pablito era alimentada diariamente, pela linda paisagem do bravio Pacífico e pelas lembranças - carrancas, garrafas, borboletas, besouros, livros, chapéus, conchas - que o cercavam. A cama de Pablo e Matilde estrategicamente posicionada para o nascer do sol, diante de dois janelões. O bar para os amigos, de frente para o mar. As gaivotas dançando contra o céu azulíssimo a ponto de parecer uma montagem. E o restante da viagem foram poemas dançando na minha cabeça, ressignificados, ecoantes.
Ainda em Isla Negra, almoçamos em um restaurante bem turístico, com comida mais ou menos. Nem vale a pena registrar o arroz com mariscos meio sem sal cujo nome esqueci.
Seguimos para a vinícola Matetic, fundada por imigrantes croatas que chegaram ao sul do Chile no século XIX, para criar gado. Os negócios foram se diversificando, e entre eles está a produção de vinhos. A vinícola é orgânica e biodinâmica, ou seja, utiliza-se dos ciclos naturais, do relevo e da ajuda de pequenos animais (ovelhas, galinhas) para acabar com as pragas. O lugar é lindo, enorme - até me lembrei um pouco da vinícola chiquérrima visitada em Mendoza, mas a chilena é cheia de vida, literalmente orgânica.
Fizemos a degustação de dois vinhos só, inclusos no pacote. Um branco ótimo, Chardonnay, e um blend de tintos assim-assim. Acabei comprando um Shiraz, El Corralillo (com cavalinho no rótulo!), que já tinha visto por aqui e ao qual não tinha dado tanto crédito. No final das contas, pelo preço, esperava mais (11 mil pesos - dava pra ter comprado uns 3 ótimos Cousino Macul no supermercado). Bom, valeu a experiência, como sempre.
Quando voltei a Santiago, fiquei, como disse, em outro apart, muito mais perto do agito central, inclusive mais perto de Santa Lucía (e com escritório no próprio prédio, o que me deu mais tranquilidade). Nessa volta estava totalmente chilena, e as pessoas já achavam que eu era local. Também tinha já soltado mais o verbo, o que faz uma baita diferença na comunicação. O novo endereço ficava ao lado de um supermercado grande, então comprei uns poucos vinhos (a mala já estava lotada, embora eu tenha dessa vez levado pouca roupa - nunca fiz uma mala em tão pouco tempo, e sem ter dormido, o que explica alguns esquecimentos). Ainda tive a sorte de ver um grupo de cantores líricos se apresentando na rua, no Paseo Huerfanos, perto de onde estava hospedada. Então pensei em como Santiago merecia mais uns dias de visita, já que agora é que estava se mostrando verdadeiramente para mim, ou eu é que estava conseguindo vê-la com olhos de íntima estrangeira.
De novo confirmei minha paixão por viajar. E já sonho com os outros destinos latino-americanos, brasileiros, europeus, asiáticos, com todas as oportunidades de mergulhar no mundo do outro e, nesse espelhamento, em mim mesma.


Desde o alto: os Andes vistos na chegada a Santiago; limonada com menta; misteriosa carta sob a porta do apart!; charme decadente do Centro; "O" ceviche de La Vega; leche asada, deliciosa descoberta; peças do Museo del Arte Precolombino; fortuita feira de livros; Catedral de Santiago, onde silenciei e chorei; no Cerro San Cristóbal; chevice mixuruca e vistas do restaurante Giratório; mote con huesillos no Cerro Santa Lucía; belíssimo Museo de Bellas Artes; guardião do Centro Cultural La Moneda e interior do centro; eu, feliz, ele, Pacífico; lindezas de Isla Negra; instalações da vinícola Matetic e meus colegas brasileiros e a guia Ingrid; cantores líricos no Paseo Huerfanos. 

2 comentários:

  1. Que sortuda eu! De passagem por um dos meus blogs preferidos, encontro nova e inspirada postagem. Viva!
    Beijos,
    Marisa

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    1. Má, ainda estou escrevendo o post do Atacama - ia mandar os dois juntos, mas você, como boa ariana, saiu na frente! :D

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