domingo, 29 de agosto de 2010

Por uma fresta

Pois é, necessário um refresco depois do cancioneiro lacrimoso!
Não se pode falar em desespero sem pensar em seu oposto. Afinal, desesperar é não saber mais o que esperar, é ver a luz se apagando lenta mas inelutavelmente quando se está sozinho num poço escuro. Sensação horrível.
Um dia desses, li uma história que me parecia desde o início totalmente desesperançada: Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios, de Marçal Aquino. O narrador-personagem parece o tempo todo encerrado num quarto onde não deixa passar uma brecha de luz – escolha sua. Também pudera, escolheu viver um amor aprioristicamente desgraçado. Mas quem o pode julgar? Até o cenário contribui para essa desolação: uma cidadezinha perdida no imenso território paraense. Personagens igualmente perdidas, imersas em lembranças, negando-se o futuro. Quase um autorretrato de Francis Bacon.
Embalei na trama triste, tão conformada quanto o narrador em relação ao seu destino. E perto do final, uma réstia de luz – como a da lua cheia no meu rosto, por uma fresta da janela do quarto, de quando em quando, nesta imensa cidade. Uma única pergunta: você não teria esperança?
Um choque para mim, que até então acreditara na sua completa desesperação. A lua por trás da nuvem. E não pude deixar de me lembrar de um episódio de Sandman, de Neil Gaiman, em que o protagonista, o Senhor dos Sonhos, está no inferno, numa disputa mediada pelo diabo “em pessoa”. Como em O aprendiz de feiticeiro, Sandman e seu oponente, o demônio Chorozon, se lançam a um embate em que um tenta subjugar o outro, porém apenas com palavras, sem transformações. Um deles é uma mosca, o outro a aranha que devora a mosca; a cobra que devora a aranha, o búfalo que esmaga a cobra. Por fim, o demônio afirma, triunfante: ele é a besta, a antivida, a escuridão. “Sou a esperança”, responde Sandman. E o inferno silencia.
Mais não digo, porque não é preciso dizer nada.

2 comentários:

  1. Sô,
    Eu acabo de traduzir uma paródia disneyana do "Inferno" (trecho da "Divina Comédia", de Dante Alighieri) e confesso que, mesmo estrelada por patos & ratos falantes, a história me deixou desconfortável.
    Mas a narrativa mais desesperançada ainda me parece "A Metamorfose", de Franz Kafka.

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  2. Na Metamorfose (como em outros textos do Kafka, bem lembrado) não há nem um raiozinho de esperança, como ao final se vislumbra no livro do Marçal Aquino. Escuro total!
    beijos,

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Cabeceira

  • "Arte moderna", de Giulio Carlo Argan
  • "Geografia da fome", de Josué de Castro
  • "A metamorfose", de Franz Kafka
  • "Cem anos de solidão", de Gabriel García Márquez
  • "Orfeu extático na metrópole", de Nicolau Sevcenko
  • "Fica comigo esta noite", de Inês Pedrosa
  • "Felicidade clandestina", de Clarice Lispector
  • "O estrangeiro", de Albert Camus
  • "Campo geral", de João Guimarães Rosa
  • "Por quem os sinos dobram", de Ernest Hemingway
  • "Sagarana", de João Guimarães Rosa
  • "A paixão segundo G.H.", de Clarice Lispector
  • "A outra volta do parafuso", de Henry James
  • "O processo", de Franz Kafka
  • "Esperando Godot", de Samuel Beckett
  • "A sagração da primavera", de Alejo Carpentier
  • "Amphytrion", de Ignácio Padilla

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