Pois tenho estado dividindo o tempo entre trabalho e arrumações. Não tenho nem tido vontade de cozinhar, para se ver como a coisa é séria.
Então, chega a hora mais difícil, a de descartar lembranças. Cerquei a tarefa, calculei, posterguei, até que não deu mais: ia ter que abrir caixas, cadernos, pastas para decidir o que ia, o que ficava.
Até me espantei com ainda ter conservado coisas que já acreditava "idas" na última mudança. Houve uma tarde que me deliciei lendo cartas trocadas com uma amiga (que revi no último sábado) quando tínhamos entre 15 e 17 anos. Ri da nossa inocência, dos "grandes problemas" que nos assolavam - trabalhos de escolha e por qual menino nos decidir, afinal. Li um cartão de uma amiga, na época recente, mas hoje entre os antigos, que me perguntava como mantinha meu bom humor - na verdade, nem lembrava que era tão bem-humorada assim.
Já um amigo recém-conhecido no colégio dizia que eu não devia estar sempre "preocupada", que, se tinha, como ele adivinhava, ideias "revoltosas", deveria expô-las.
Encontrei ainda cartas trocadas com colegas do restauro - nem me lembrava das tais cartas, mas foi uma delícia relembrar, pela resposta das meninas, o que tínhamos vivido naquele espaço em comum.
Havia diversas cartas e cartões de um amigo que nunca mais vi, vizinho de meus primos no Rio (cujo contato também perdi). Algumas correspondências de uma tia que eu queria como madrinha de crisma - desisti de me crismar, mas essa tia ficou como uma pessoa querida.
Encontrei também textos meus e tive um arrepio: realmente, o que escrevemos mostra o que somos, em cada momento. No caso, com 15, 16 anos, uma alma meio "emo". Nem me reconheço, embora não possa negar que era eu. Também. (Acabo de receber de um amigo uma carta que Graciliano Ramos escreveu para sua irmã, que ensaiava os primeiros passos na literatura - a bronca do irmão famoso dizia respeito a escrever apenas sobre o que conhecemos. E se nada ou pouco conhecemos? Bom.)
O pior foi ter descoberto que eu havia guardado tantas agendas. Deu um trabalhão descartá-las.
E fiquei especialmente surpresa por perceber como a memória apaga tanta coisa. Bilhetinhos de pessoas que nem imagino quem sejam se contrapõem ao fato de eu me lembrar da roupa que vestia em determinada ocasião. Sim, é o caso da importância que damos aos fatos, da tal memória seletiva. Mas é assustador perceber como os eventos vividos simplesmente... somem. Como tudo acontece ao mesmo tempo, não percebemos as nossas próprias transformações. Somente quando precisamos parar e olhar com distanciamento para os fatos é que nos damos conta disso tudo, como se observássemos os fotogramas de um filme, um a um.
Não, não temos controle de nada. E muitas vezes nem conseguimos apreender os acontecimentos, que passam por nós como as águas de um rio. Mais um motivo para me preocupar menos com os vaivéns da vida. Não só as coisas mudam o tempo todo, como também elas simplesmente podem desaparecer. Simplesmente.