quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

O parto da marmota

Ao fim de nove meses de pandemia, 2020 vai parindo a si mesmo em looping. Já se vê a cabecinha da marmota apontando. Quantas vezes ela vai nascer? Não temos a menor ideia, tudo depende de a vacina estar disponível. Espero que no próximo ano possamos pelo menos ecoar Belchior: "ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro". 
Aliás, por falar em Belchior, entro em dezembro tendo acabado de assistir ao emocionante e necessário AmarElo, documentário sobre o álbum de mesmo nome do Emicida que, aliás, se inicia com esses versos do mais saudoso dos cearenses. Amar se aprende, ser solidário se aprende - hoje não consigo conceber como alguém ainda pode achar que os problemas enfrentados por negros, pobres, mulheres, gays não têm relação consigo. A indiferença é realmente um troço mortal, dizimadora de afeto e esperança.
Não sei o que teria sido de mim em 2020 sem os pets e o pilates on-line - talvez tivesse entrado numa depressão profunda. Mas ainda vou levar as inquietações todas para o próximo ano, porque não há mais como, diante da crua desigualdade social, racial, de gênero, não fazer nada. 
Em 2020, comprei mais pela internet, uns 15% além do que compraria em um ano normal, mas nada tão diferente do que costumo comprar. Roupas que só vou usar em casa mesmo, coisas pra casa, remédios pra pets, delicadezas de papelaria, ferramentas para bordar, cursos. Vixe, que eu continuei consumista mesmo com o medo da crise (e talvez pela ansiedade provocada por ela), mesmo com toda revisão de mundo. Como já disse, ainda somos privilegiados com ter trabalho, teto, comida.
Fiquei sem pedalar, mas tentei treinar em casa, bem menos do que gostaria. Engordei, mas nem tanto. Esqueci de tomar sol, até porque aqui choveu o tempo todo. Tive micose, desconfio que estou no final de uma gastroenterite, ou foi o excesso de anti-inflamatório que provocou um revertério intestinal nas duas últimas semanas. E ainda lateja o local da extração do dente. Mas nada que se compare à crise do piriforme por 24 dias, e cheirando a água sanitária. 
Nossa vida social se limitou ao supermercado e aos almoços com os sogros. Fui com um certo pânico ao dentista e fazer uma radiografia panorâmica. Visitamos um casal de amigos, e o tempo todo pensei, entre sorrisos, que podia/posso ter sido infectada. Fomos ao shopping para umas poucas compras de Natal sem qualquer sentimento de lazer, embora víssemos várias pessoas vivendo essa ilusão, mesmo mascaradas. 
Vimos ainda mais séries que antes. Fiquei ainda mais cansada que antes. 2020 só veio confirmar o que não quero para minha vida. Sei que nada será como antes, amanhã.
Acompanhei a transformação do meu trabalho, que já era remoto, em uma versão EAD. Fiz curso para dar conta dessa mudança. Aliás, fiz um tanto de cursos - foi uma coisa boa nesse período. Tentei colocar a criatividade em prática, e não só na cozinha. Pintar, bordar, voltar a escrever - e aqui tive um choquezinho. 
E vi o mundo entrando numa escuridão cuja extensão não dá ainda pra precisar. Por isso acho que me emocionei tanto assistindo ao documentário de Emicida, uma luz no breu, uma chama de resistência e união em meio ao horror, um brado por justiça, arte no seu estado de guerrilha. Na verdade, a única saída possível. Que nos inspire para continuarmos respirando.

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Cabeceira

  • "Arte moderna", de Giulio Carlo Argan
  • "Geografia da fome", de Josué de Castro
  • "A metamorfose", de Franz Kafka
  • "Cem anos de solidão", de Gabriel García Márquez
  • "Orfeu extático na metrópole", de Nicolau Sevcenko
  • "Fica comigo esta noite", de Inês Pedrosa
  • "Felicidade clandestina", de Clarice Lispector
  • "O estrangeiro", de Albert Camus
  • "Campo geral", de João Guimarães Rosa
  • "Por quem os sinos dobram", de Ernest Hemingway
  • "Sagarana", de João Guimarães Rosa
  • "A paixão segundo G.H.", de Clarice Lispector
  • "A outra volta do parafuso", de Henry James
  • "O processo", de Franz Kafka
  • "Esperando Godot", de Samuel Beckett
  • "A sagração da primavera", de Alejo Carpentier
  • "Amphytrion", de Ignácio Padilla

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