terça-feira, 19 de abril de 2022

Etarismos

Minha amiga Lu compartilhou outro dia um vídeo de um médico comentando como as mulheres costumam se cuidar mais, física e mentalmente, do que os homens, chegando assim à idade mais avançada muito mais saudáveis. Ele usou como exemplo o Alain Delon, que declarou que ia praticar o suicídio assistido, permitido na Suíça, porque não suporta o peso da velhice. Comparava, enfim, o comportamento de homens e mulheres após os 50 anos.
Parecia uma fala simpática, mas tinha uma nota de indisfarçada condescendência. Embora concorde com ele sobre as mulheres se cuidarem melhor depois dos 50 anos, me incomodou que ele não adentrasse as razões por que isso acontece. Se as mulheres buscam o suporte de outras mulheres, se elas viajam mais, se se cuidam mais física e mentalmente após os 50, provavelmente é porque chegaram a uma fase na vida de maior liberdade, de menos compromissos familiares. Provavelmente, não têm maridos, ou porque enviuvaram, ou porque se separaram, ou porque não querem mesmo. Se têm filhos, já estão criados. Se podem viajar, ou estão aposentadas, ou então têm uma reserva de dinheiro advinda de poupança ou de trabalho remunerado. Se não forem brancas, provavelmente terão menos mobilidade, devido à desigualdade social e financeira, mas a mesma - ou ainda mais - solidariedade com outras mulheres. 
Foi tudo isso que o médico esqueceu de levar em conta. Que as mulheres têm uma sobrecarga de afazeres muito maior que a dos homens, e só se libertam dela na maturidade da vida, quando o conseguem. Sua experiência com cuidar, ainda que quase sempre imposta culturalmente, acaba se revertendo em favor delas. Já os homens, acostumados ao cuidado feminino, muitas vezes se veem sem saber o que fazer quando não o tem mais, e alguns se amarram a relacionamentos para garantir esse cuidado. 
Por sorte, os debates antipatriarcais têm possibilitado que novas gerações de mulheres se deem conta da sobrecarga injusta e absurda cada vez mais cedo, o que pode ocasionar maior liberdade feminina. As mulheres mais velhas, por seu lado, estão justamente lutando para serem vistas em sua potência, não apenas como mães, avós, viúvas, mas como mulheres que continuam a viver plenamente. O tal médico não toca nesse tema em nenhum momento do vídeo - ou seja, não está sequer a par desse debate tão importante que temos vivido, contra o etarismo, outro elemento que atrasa a conquista da liberdade e da equidade social, principalmente para as mulheres. O etarismo que acomete os homens é de outra natureza, normalmente mais tardio, quando então se ajunta ao capacitismo enfrentado pelos velhos. No caso das mulheres, a questão da idade se relaciona sobretudo com o apagamento social desde os 40 anos - não devemos usar tal corte de cabelo ou tais roupas, não devemos nos comportar de tal forma; só nos resta nos recolhermos a um canto, enquanto cuidamos de alguém ou a morte não chega. 
Em coisas simples é que vemos a mudança de visão feminina sobre a idade: assumir os cabelos brancos, algo que foi potencializado na pandemia, é um símbolo de tomar a vida nas mãos sem se preocupar com a opinião alheia. Na esteira, vem a liberdade de não se igualar a modelos macérrimas, a não se ocupar demais em disfarçar os sinais próprios da idade, como manchas na pele ou curvas a mais. Claro que não é só sobre a aparência, mas a aparência, no caso das mulheres, tem sido há tanto tempo um norteador de comportamento que nada mais justo que nós, mulheres, possamos dizer como queremos que ela seja: a de cada uma, diversa, exclusiva, marcada por existências próprias. 

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Cabeceira

  • "Arte moderna", de Giulio Carlo Argan
  • "Geografia da fome", de Josué de Castro
  • "A metamorfose", de Franz Kafka
  • "Cem anos de solidão", de Gabriel García Márquez
  • "Orfeu extático na metrópole", de Nicolau Sevcenko
  • "Fica comigo esta noite", de Inês Pedrosa
  • "Felicidade clandestina", de Clarice Lispector
  • "O estrangeiro", de Albert Camus
  • "Campo geral", de João Guimarães Rosa
  • "Por quem os sinos dobram", de Ernest Hemingway
  • "Sagarana", de João Guimarães Rosa
  • "A paixão segundo G.H.", de Clarice Lispector
  • "A outra volta do parafuso", de Henry James
  • "O processo", de Franz Kafka
  • "Esperando Godot", de Samuel Beckett
  • "A sagração da primavera", de Alejo Carpentier
  • "Amphytrion", de Ignácio Padilla

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