Poucas vezes vi um filme tão contidamente doloroso como Girl, do jovem diretor belga Lukas Dhont. Apesar das críticas ao fato de o ator protagonista não ser uma menina trans, mas um garoto cisgênero, a performance desse jovem, Victor Polster, é irretocável, no sentido de nos levar junto na sua travessia de luta por ser quem é, sofrendo silenciosamente violências grandes e pequenas numa sociedade aparentemente progressista como a belga. Polster é bailarino, então suas cenas de dança são vertiginosas na busca da perfeição e de um lugar naquele mundo. Tem um quê de Cisne negro nessa vertigem do movimento e também na busca pela transformação - no caso de Girl, a transformação da protagonista em si mesma, naquilo que nasceu para ser, uma mulher, e uma mulher que dança.
Neste momento preciso, no Brasil, a comunidade LGBTQIA+ sofreu um baque na garantia de seus direitos. Justamente os direitos de existirem, de constituírem família, de simplesmente serem. Apesar da vitória de Lula, sabíamos que a luta não findaria, e a ultradireita continua seus ataques obscenos contra os direitos humanos. Apesar da insipiência argumentativa, eles detêm o capital financeiro que direciona as leis. E o mundo parece cada vez mais do avesso quando vemos parte da humanidade zelosa em promover a infelicidade alheia.
Isso tudo, os ataques reais e os ataques que a personagem de Girl sofre (mesmo com todo o apoio familiar, as jovens bailarinas exigindo que ela mostre seu membro, e toda a pressão para que não se misture às outras meninas, chegando ao fim trágico da mutilação), me fazem lembrar da fala de Rubem Alves no documentário Eu maior, sobre a tragédia grega e a compreensão de Nietzsche acerca dela, de que os gregos não se entregavam à inevitável tragédia da vida porque cultivavam a beleza. Hoje está mais difícil pensar na beleza em meio ao horror cotidiano, até porque a arte e a natureza, portadoras dessa beleza, também têm sido violentadas.
Talvez por isso tudo a dor silenciosa em Girl soe como a mais perfeita tradução para esse sofrimento que muitas e muitos de nós não conhecemos, mas que justamente por isso não devemos ignorar. Nisso é que residem a empatia e a verdadeira compaixão, e são elas que nos fazem verdadeiramente humanos.