Este post inaugura uma curta série, "Para que serve", inspirada no utilitarismo de nossos tempos.
Também eu tenho sido forçada a pensar na utilidade das pessoas, não no sentido do que elas podem fazer de útil, mas no de elas terem ou não alguma utilidade, como um guarda-chuva ou uma garrafa térmica (dois objetos que me ocorrem num dia que começou frio e chuvoso). Penso nisso especialmente quando vejo como a nenhuma importância de um número crescente de pessoas faz que sejam descartadas enquanto dormem ao relento ou esperam um ônibus ou entram em uma loja de conveniência ou saem de um banco com o dinheiro da aposentadoria. Ou quando vejo filhos tratando seus pais como roupas velhas, esquecidas no fundo do armário ou fazendo as vezes do pano de chão, sendo tratados como menos que empregados, pois sua obrigação com a prole é eterna mesmo quando não têm mais forças para tanto. Ou pais marcando para sempre a alma dos filhos com palavras duras e impensadas. Ou parceiros se digladiando às cegas. Assim como em algum momento o guarda-chuva e a garrafa térmica se tornam pouco necessários (o sol surge, a chuva passa, e ninguém mais quer uma bebida quentinha), parece também que as pessoas deixam de ter alguma utilidade e por isso não são mais sequer vistas. E daí o descaso, o abandono, a intolerância e a consequente violência, que quase não espantam mais.
Talvez por tudo isso sejam tão tocantes e urgentes filmes como Amour (Michael Haneke, 2012) e Hanami - Cerejeiras em flor (Doris Dörrie, 2008). Ambos tratam da vida de casais maduros, filhos criados e todo tempo que lhes resta para... ficar por sua própria conta. Na minha opinião, o mais bonito nesses filmes é a verdade dos relacionamentos - são difíceis em todas as instâncias, mostrando como cada pessoa é um planeta solitário, o último falante de uma língua em extinção. E mesmo assim, com toda dificuldade, com toda fugacidade da vida, há um esforço contínuo de compreensão, ou pelo menos de comunicação, até os limites de cada um. Até o fim (do fillme, da vida, dos relacionamentos) aprende-se algo. E percebe-se que o tempo todo se esteve em aprendizado, desde que mente e coração não estivessem trancados para isso.
O metódico marido que se constrangia ao ver a esposa dançando butô mergulha depois na exótica cultura oriental, aos pés do Fuji, para que a lembrança da companheira se entranhe em sua pele. Aliás, o casal plenamente misturado na dança garante as cenas mais belas de Hanami.
Já os protagonistas de Amour são mais francesa e docemente secos, mas igualmente humanos e falhos. Sabem o tempo todo para onde caminham, e seguem sua trajetória de solidões acompanhadas, perdendo-se um do outro quando (e somente quando) a comunicação não é mais possível.
Com seu quinhão de melancolia, esses dois filmes, porém, acabaram soando para mim como um manifesto lírico contra o utilitarismo, uma bandeira de esperança. Que as pessoas não signifiquem nada umas para as outras, que não sirvam para nada neste mundo que cobra uma utilidade para tudo, é de se esperar. Mas que ainda haja histórias refletindo a escolha consciente de estar junto, amar, conversar, cuidar, CONVIVER (mesmo sabendo da inevitabilidade do fim de todas as coisas e de todos nós) feita por pessoas comuns, isso sim é uma coisa alegremente espantosa.
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Tudo de bão
Cabeceira
- "Arte moderna", de Giulio Carlo Argan
- "Geografia da fome", de Josué de Castro
- "A metamorfose", de Franz Kafka
- "Cem anos de solidão", de Gabriel García Márquez
- "Orfeu extático na metrópole", de Nicolau Sevcenko
- "Fica comigo esta noite", de Inês Pedrosa
- "Felicidade clandestina", de Clarice Lispector
- "O estrangeiro", de Albert Camus
- "Campo geral", de João Guimarães Rosa
- "Por quem os sinos dobram", de Ernest Hemingway
- "Sagarana", de João Guimarães Rosa
- "A paixão segundo G.H.", de Clarice Lispector
- "A outra volta do parafuso", de Henry James
- "O processo", de Franz Kafka
- "Esperando Godot", de Samuel Beckett
- "A sagração da primavera", de Alejo Carpentier
- "Amphytrion", de Ignácio Padilla
Querida Solange, este é O tema do momento, acho. E atravessa mesmo todas as relações. Tudo o que disse acima vale, creio eu, pra relação com os bichos - todos eles. Mas se pensarmos só nos cães e gatos, esses caras ótimos que fundamentalmente oferecem só amor e carinho, já fica flagrante como os humanos lhes querem úteis, servis e, não servindo, descartam-nos (gerando, entre outras coisas terríveis, um problemão urbano).
ResponderExcluirPensei nisso quando assisti a esses filmes que cita. Penso nisso sempre por conta dos meus bichos e dos meus velhinhos... Penso nisso porque percebo (de vez em quando) que corro dia e noite pra ser útil, desesperadamente,fazendo de conta que não sei que também eu não terei utilidade.
Penso que daí decorre um outro tema hipercontemporâneo: a nossa famigerada "falta de tempo", reclamada e reproduzida como um conforto diante do assombro da inutilidade de ser.
Lu, você tem sempre a palavra-ideia precisa - são esses mesmo os maiores problemas de nossa época, com efeitos devastadores sobre as relações. beijos!
ExcluirSolange, para você e para a Lu (saudade das duas!), verso do Drummond: "Esqueceram-me aqui, eis tudo". Depois procuro e mando o nome do poema inteiro, para que leiam.
ResponderExcluirBeijos!
Não é incrível como Drummond sabia das coisas, desde sempre?
ExcluirSaudade também, Cely querida!