quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Envelhecer

A gente sempre se prepara para o envelhecimento físico, reservando os sinais do envelhecimento mental para os outros - o pai esquecido, a avó que resgata histórias antiquíssimas, a mãe da amiga que troca seu  nome. A gente deve chegar lá também, mas por enquanto é primeiro o corpo que dá os sinais, com menos força, alguns tropeções, olhos pedindo óculos mais fortes, pele pedindo hidratação. Depois é que vêm os esquecimentos, os enganos. 
Tem um outro aspecto do envelhecimento de que a gente não se dá conta. O da alma. Meu terapeuta discorda, diz que não é a alma que envelhece, mas o self que está insatisfeito com o que temos feito da vida. Talvez sejam as duas coisas. Porque a sensação é de que a alma envelhece sim. 
E topei hoje com uma recordação de seis anos atrás, um trecho de As brasas, do Sándor Márai:

Depois, seu corpo envelhece; não todo de uma vez é verdade, primeiro envelhecem os olhos ou as pernas, o estômago, o coração. A gente envelhece assim, pedaço por pedaço. E então, de repente, sua alma envelhece: mesmo sendo o corpo efêmero e mortal, a alma ainda é movida por desejos e recordações, ainda procura a alegria. E quando também desaparece esse desejo de alegria, só restam as recordações e a inutilidade de todas as coisas; nesse estágio, estamos irremediavelmente velhos. Um dia você acorda e esfrega os olhos e não sabe mais por que acordou.

É isso. Os escritores e os poetas sempre sabem de tudo antes de nós.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Cabeceira

  • "Arte moderna", de Giulio Carlo Argan
  • "Geografia da fome", de Josué de Castro
  • "A metamorfose", de Franz Kafka
  • "Cem anos de solidão", de Gabriel García Márquez
  • "Orfeu extático na metrópole", de Nicolau Sevcenko
  • "Fica comigo esta noite", de Inês Pedrosa
  • "Felicidade clandestina", de Clarice Lispector
  • "O estrangeiro", de Albert Camus
  • "Campo geral", de João Guimarães Rosa
  • "Por quem os sinos dobram", de Ernest Hemingway
  • "Sagarana", de João Guimarães Rosa
  • "A paixão segundo G.H.", de Clarice Lispector
  • "A outra volta do parafuso", de Henry James
  • "O processo", de Franz Kafka
  • "Esperando Godot", de Samuel Beckett
  • "A sagração da primavera", de Alejo Carpentier
  • "Amphytrion", de Ignácio Padilla

Arquivo do blog