sábado, 27 de abril de 2024

A perfeição e a poesia de "Dias perfeitos"

Fazia muito tempo que eu não via um filme de Wim Wenders, até porque ele realmente deu uma sumida do cinema ficcional. Estava mais na vibe dos documentários, como o ótimo Sal da terra, sobre a obra de Sebastião Salgado, e mais uma meia dúzia sobre diversos temas ligados a cultura. Mas em mim ficou para sempre a impressão deixada por Asas do desejo e Tão longe, tão perto
Então, de repente, me aparece esse Dias perfeitos, feito no Japão, em Tóquio, para ser mais exata. Em alguns momentos, me lembrou Murakami, mas é Wim Wenders mesmo, pura poesia na luz, nos silêncios e na trilha sonora em fitas cassete. O protagonista, o Sr. Hirayama, trabalha limpando banheiros públicos em Tóquio. Há uma repetição da rotina do personagem ao longo do filme, mas as pequenas variações, encontros, modos de olhar, são profundas mesmo sem provocar grandes efeitos dramáticos na narrativa. Hirayama, vivido pelo excelente Koji Yakusho, quase não fala, ou fala somente o necessário, mas ele observa tudo, experimenta a vida por meio da sua observação silenciosa.  
Claro que é um encantamento à parte conhecer, junto com ele, a vida cotidiana em Tóquio, e como a tecnologia nipônica está nos banheiros públicos, muitos deles enriquecidos com elementos de design. Mas há uma beleza igualmente nipônica na maneira como Hirayama realiza suas tarefas, nos lembrando que não há trabalho mais importante que outro e que limpar um banheiro é tão fundamental quanto o trabalho de um banqueiro. Aliás, logo percebemos que limpar banheiros é uma opção de Hirayama, mas por que ele optou por isso? Há uma sugestão de qual seja a razão quando aparecem na história a sobrinha e a irmã do protagonista. 
Outro dia, li um comentário do Ivan Martins sobre o filme, alertando para a aparente perfeição da vida de Hirayama que esconde o medo da vida em si. É muito provável, é algo que muitos de nós fazemos, tentar ter controle do cotidiano para não vermos o trem descarrilar, provavelmente porque já o vimos antes. Até onde conseguimos ir nesse controle? Hirayama, que enxerga o sublime no ordinário, vê sua paz ameaçada com a irmã, a sobrinha, o colega folgado, o suposto pretendente de seu interesse amoroso, a dona do restaurante (que interpreta lindamente, em japonês, "House of the rising sun", da banda The Animals). E tudo sucede no filme como sucede conosco, uma sequência de acontecimentos diários que são tirados do eixo pelo outro, que é inferno e paraíso, paraíso e inferno. A única certeza é que não conseguimos nunca ser os mesmos, depois do descarrilamento, dessas "falhas na Matrix", para mencionar outra película, ainda que os dias pareçam perfeitamente iguais.   

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Cabeceira

  • "Arte moderna", de Giulio Carlo Argan
  • "Geografia da fome", de Josué de Castro
  • "A metamorfose", de Franz Kafka
  • "Cem anos de solidão", de Gabriel García Márquez
  • "Orfeu extático na metrópole", de Nicolau Sevcenko
  • "Fica comigo esta noite", de Inês Pedrosa
  • "Felicidade clandestina", de Clarice Lispector
  • "O estrangeiro", de Albert Camus
  • "Campo geral", de João Guimarães Rosa
  • "Por quem os sinos dobram", de Ernest Hemingway
  • "Sagarana", de João Guimarães Rosa
  • "A paixão segundo G.H.", de Clarice Lispector
  • "A outra volta do parafuso", de Henry James
  • "O processo", de Franz Kafka
  • "Esperando Godot", de Samuel Beckett
  • "A sagração da primavera", de Alejo Carpentier
  • "Amphytrion", de Ignácio Padilla

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