sábado, 27 de abril de 2024

Uma possível conversa entre "O avesso da pele" e "Ficção americana"?

Comprei O avessso da pele, de Jeferson Tenório, pouco antes de me mudar para Salvador, junto com dois outros livros. Meu exemplar ainda estava no shrink quando surgiu a polêmica no Sul (sempre o Sul) de que o livro não deveria ser adotado nos colégios do Paraná. Vi que estava mais do que na hora de começar a leitura. 
E que leitura! Desde a primeira linha somos levados ao mundo das lembranças do narrador, que ora conversa com o pai que acabou de morrer, ora conta sobre a infância e juventude da mãe e como ela e o pai se conheceram. Permeando essas relações e realidades, o racismo diário, que cada uma das personagens compreende de uma forma, algumas vezes se surpreendendo com o motivo de serem (des)tratados de dada maneira. A violência policial é quase uma personagem à parte, absolutamente verossímil e palpável. Tenório constrói a narrativa alternando as experiências do narrador e seus pais de forma fluida mas - como poderia dizer? - pedregosa. Porque são muitos os percalços atravessados por essas pessoas entre vida e morte. 
Calhou de eu assistir na sequência ao filme Ficção americana, com o ótimo Jeffrey Wright. Este ano vi quase tudo que estava concorrendo ao Oscar, mas porque os filmes estavam muito diversos e interessantes. Pois Ficção americana tem uma premissa atraente, que é a de um escritor com bloqueio criativo que resolve criar uma persona do "gueto" para escrever um livro que caia nas graças de editores em busca de algo "exótico". O autor, que é negro, precisa ir em busca da cultura negra que ele não vivencia. Há várias críticas implícitas na história, mas me pareceu às vezes caricato demais - ainda mais no país que tem como símbolo da luta antirracista o assassinato de George Floyd, impedido de respirar e de viver por policiais. Pensei que teria sido ótimo se o diretor e o roteirista tivessem lido o livro de Jeferson Tenório para uma vivência mais real da experiência de uma família negra, mesmo de classe média. Talvez o filme perdesse algo do humor que tenta imprimir, mas ganharia demais em profundidade.

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Cabeceira

  • "Arte moderna", de Giulio Carlo Argan
  • "Geografia da fome", de Josué de Castro
  • "A metamorfose", de Franz Kafka
  • "Cem anos de solidão", de Gabriel García Márquez
  • "Orfeu extático na metrópole", de Nicolau Sevcenko
  • "Fica comigo esta noite", de Inês Pedrosa
  • "Felicidade clandestina", de Clarice Lispector
  • "O estrangeiro", de Albert Camus
  • "Campo geral", de João Guimarães Rosa
  • "Por quem os sinos dobram", de Ernest Hemingway
  • "Sagarana", de João Guimarães Rosa
  • "A paixão segundo G.H.", de Clarice Lispector
  • "A outra volta do parafuso", de Henry James
  • "O processo", de Franz Kafka
  • "Esperando Godot", de Samuel Beckett
  • "A sagração da primavera", de Alejo Carpentier
  • "Amphytrion", de Ignácio Padilla

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