Sojourner Truth foi uma ex-escravizada estadunidense que conseguiu se libertar e passou a lutar contra a escravidão e para libertar seu filho; foi quando adotou esse nome, que significa "verdade peregrina". Ela se tornou famosa pelas suas lutas, e principalmente após seu discurso, depois transformado em livro, em que questionava um júri se "ela não era uma mulher", já que tinha menos direitos que uma mulher branca.
Esse "e eu não sou uma mulher?" ressoa em lutas diversas, porque ser mulher não é um dado meramente biológico, como Simone de Beauvoir nos alertou. Mais ainda, como nos ensinaram Lélia González e Kimberlé Crenshaw, há muitas categorias do feminino, que envolvem também raça e classe. Por fim, mas não menos importante, as transfeministas também agregaram a essa discussão a pergunta: mas, afinal, o que é ser mulher? Por que alguém almeja sê-lo?
Na programação da pós, apresentei um seminário sobre o documentário Divinas divas, de Leandra Leal, que mostra as principais travestis brasileiras - Rogéria, Jane di Castro, Eloína dos Leopardos, Fujika de Halliday, Marquesa, Brigitte de Búzios, Camille K e Divina Valéria - em um show que fizeram por dez anos no Teatro Rival, na Cinelândia. Além do preconceito e da violência sofridos, inclusive do Estado militar, o que mais me chamou a atenção foi a questão de quererem ou não ser mulheres e o que fazer para chegar a isso, inclusive se arriscando com aplicação indiscriminada de hormônios - o que me fez lembrar do Fofão da Augusta, personagem icônica do Centro de São Paulo, com suas imensas e maquiadas bochechas.
A busca desesperada pela beleza e juventude, que teoricamente seria o que define uma mulher (e Dustin Hoffman, falando sobre sua personagem em Tootsie, revela como percebeu que uma mulher, para ele, tinha que estar associada a um padrão de beleza predeterminado para ser minimamente considerada), é o tema muito pertinente, pra não dizer urgente, do filme A substância, da francesa Coralie Fargeat, estrelado por Demi Moore e Margareth Quailey e acertadamente classificado como terror. Terror dos bons, que prende até o último segundo, e que mostra, sem esconder nada, o que está no fundo da busca da "nossa melhor versão" - o esvaziamento de si mesmo/a. É preciso se tornar outra para ser melhor?
As mulheres cis e trans vivem esse dilema o tempo todo - o que, afinal, é ser mulher? Não podemos ser pretas, pobres, velhas, gordas, fora do "padrão" sempre imposto pelo patriarcado? É preciso mesmo entrar numa caixinha para ser? Ou será que impor nossa existência não vencerá pelo cansaço esses haters do feminino? Há muito que pensar, mas mais ainda o que fazer - e isso não passa pelos procedimentos estéticos.