segunda-feira, 17 de março de 2014

Convenções

A palavra convenção sempre despertou minha curiosidade. Ao mesmo tempo que pode significar reunião, quer dizer "conjunto de regras adotadas a partir de combinação ou acordo prévio". Ficava sempre encafifada com o que significava então haver no Anhembi um Palácio das Convenções  - lugar de reunião ou de regras estabelecidas? Uma coisa e outra, talvez.
As convenções sociais, porém, são quase sempre estabelecidas a priori, sem o tal acordo entre as partes. Assim é que nascemos já com alguns "papéis" a cumprir. Alguns se identificam com o papel que cumprem, o que é ótimo; outros o cumprem sem um questionamento sequer, embora se sintam estranhamente constrangidos, o que é de fato estranho. E há quem questione e proponha novos papéis, mais afinados consigo.
Mesmo sem ter tanta clareza sobre isso, nunca me adaptei instantaneamente às convenções. Desde muito cedo já ouvia perguntas acerca de casamento, maternidade - quando eu pensava em assumir esses papéis? Achava tudo muito esquisito - por que "deveria" casar, ter filhos? Nunca caí nessa conversa de que toda mulher deve ser mãe, constituir família. Nem de que todo homem deve ser infiel, ou de que ele é o provedor financeiro, e a mulher deve carregar nas costas todo o resto.
Além de decidir morar sozinha (mas não ser uma pessoa solitária), ainda resolvi trabalhar em casa. Particularmente, acho civilizadíssimo, adequado ao meu modo de vida, numa cidade em que ninguém sai do lugar por conta do trânsito impossível. Aliás, que estranho eu não ter um carro, nem carteira de habilitação. Não tenho orelha furada. Mesmo na época da faculdade de História não fumava maconha, estranhíssimo!
Só aprendi a cozinhar quando fui morar sozinha, e amei. Amo cozinhar, e tanto mais porque não é uma obrigação, mas um prazer. Também comecei a bordar há pouco, não como uma convenção herdada, e sim por uma necessidade criativa. Nunca fiz balé, embora adore dançar (essa foi uma convenção ignorada pela minha família, algo que nunca foi sequer mencionado em casa). Na faculdade, afinal, fiz judô (éramos três moças no meio de muitos rapazes - quem disse que isso pode ser ruim?). Fui fazer flamenco há pouco tempo, e fui questionada a respeito - afinal, com a minha idade os interesses têm que ser exclusivamente utilitários, não é isso? Mesma coisa com o sumiê, e até com o bordado: o que você vai fazer com isso?
Aliás, quanta coisa fui fazer bem mais tarde, especialmente porque podia então bancar financeiramente minhas escolhas! E tudo isso fiz porque queria, porque me interessava, e não porque havia um espectro social soprando aos meus ouvidos que assim é que deveria ser. Talvez por isso procure respeitar as vivências alheias, desde que não prejudiquem ninguém. Por isso tenho amigos heterossexuais, gays, evangélicos, kardecistas, católicos, umbandistas, pretos, brancos, amarelos, vermelhos, engenheiros, artistas plásticos, editores. De direita, acho que nenhum, porque também é necessário manter a coerência!
Atualmente vejo familiares esperando de mim, que sou solteira, "não trabalho" (afinal, trabalhar em casa significa ter muito tempo livre) e moro sozinha (o que significa ter espaço disponível em casa) que assuma toda responsabilidade por minha mãe, como já esperavam que fizesse por minha avó (e se quero dividir as responsabilidades ouço, em tom acusatório, "que mãe só tem uma!", como se eu não soubesse). Também vejo uma amiga que acabou de perder o marido sendo consolada com um "logo aparece outro" - hã? Acho que por trás de tudo isso, desses consolos e cobranças apressados, esconde-se a tentativa de ter a consciência limpa (de ter consolado a contento, jogando a responsabilidade no futuro, e de não ter precisado fazer nada, pois há alguém que o fará). Provavelmente são as mesmas pessoas que dizem, diante da proposta de algo novo: "Sempre foi assim, por que mudar?".
Pode ser que amanhã eu mude de ideia, e passe a ter um comportamento mais convencional. Mas certamente isso será por uma necessidade interna, e não porque alguém me disse que "deve ser assim".

2 comentários:

  1. Que delícia essa sua reflexão Solange! Soa um pouco como desabafo, mas é um desabafo equilibrado como só poderia ser a fala de quem se permite ser diference, nada convencional, justamente por essa ser uma necessidade interna. Em relação à mãe, eu vim morar com a minha e acredita? não só a salvei de uma roubada que seria ser maltratada pelos que adoram "convenções do mal" (como a de maltratar idosos indefesos, pois a partir de uma idade, não tem jeito, qualquer um pode ficar indefeso e precisar de ajuda), como aprendi a compartilhar uma vida digna e isenta de convenções fajutas <3

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Josafá, você é um querido! Que bom confirmar que compartilhamos de uma mesma visão de mundo e de vida. <3
      beijos, beijos

      Excluir

Cabeceira

  • "Arte moderna", de Giulio Carlo Argan
  • "Geografia da fome", de Josué de Castro
  • "A metamorfose", de Franz Kafka
  • "Cem anos de solidão", de Gabriel García Márquez
  • "Orfeu extático na metrópole", de Nicolau Sevcenko
  • "Fica comigo esta noite", de Inês Pedrosa
  • "Felicidade clandestina", de Clarice Lispector
  • "O estrangeiro", de Albert Camus
  • "Campo geral", de João Guimarães Rosa
  • "Por quem os sinos dobram", de Ernest Hemingway
  • "Sagarana", de João Guimarães Rosa
  • "A paixão segundo G.H.", de Clarice Lispector
  • "A outra volta do parafuso", de Henry James
  • "O processo", de Franz Kafka
  • "Esperando Godot", de Samuel Beckett
  • "A sagração da primavera", de Alejo Carpentier
  • "Amphytrion", de Ignácio Padilla

Arquivo do blog