terça-feira, 20 de maio de 2014

Relações holográficas versus mãos dadas

Falamos muito das relações virtuais, como podem ser enganadoras, mas como são "reais" apesar de tudo, pois são boa parte do que vivenciamos hoje, queiramos ou não, em maior ou menor grau.
Pois outro dia me peguei pensando em algumas relações holográficas que já tive, e tenho. Talvez a diferença com uma relação virtual seja muito sutil, mas a que estou chamando de holográfica me parece mais enganosa, parece colocar ao alcance de nossas mãos algo que não está lá, embora pareça estar. Quem sabe a relação virtual seja quase o contrário disso: parece que não se está lá, pois normalmente não se vê, mas está. Pelo menos naquele momento, diante de um computador, mesmo que do outro lado da cidade ou até do mundo, alguém está ali por você.
Do outro lado, com exceção dos filmes de ficção científica e de um ou outro avanço despirocado no Japão, a holografia é normalmente produto de um passado: algo foi filmado em outro tempo e projetado então para parecer hoje, agora. Assim, portanto, são as relações "holográficas": aquilo já foi, "já era", é só projeção de um passado que não se deseja abandonar. Mas praticamente já não está ali - quando tentamos tocar, as mãos encontram o vazio. E a gente acorda, estremunhada. Sem surpresa, a gente sofre.
Alguém pode argumentar que o toque, a carne (normalmente muito valorizados) nessas relações são reais. Mas vejam que ironia: mesmo no caso dos relacionamentos afetivos, um e outro são só imagem, cobertura. É a essência, tão impalpável, que torna concretos e verdadeiros os afetos. Por isso é que, diante de uma pessoa querida que morreu, já não reconhecemos quem ali jaz - o que nos fazia reconhecer um ao outro se foi, deixou o invólucro. Invisível e, mesmo assim, fundamental. E ficamos assombrados com o corpo que ainda existe por algum tempo e que já não nos diz nenhum respeito. Ficamos pasmos com a força do invisível, que nos fez amar aquela pessoa e que partiu, levando o mais importante daquela existência.
Parece que estou fugindo do assunto, mas a viagem é uma só: o querer ser feliz com o outro, o outro querer ser feliz com a gente como algo de fato concreto. Vi há pouco uns cartuns dos Peanuts em que o Charles Schultz mostra seu conceito de amor (amplo como deve ser). Ai de mim que sou romântica: chorei ao ver um que dizia "Amar é caminhar de mãos dadas". Um dia desses comentei com uma amiga que quero um parceiro que ainda caminhe de mãos dadas comigo quando formos velhinhos. Acho que as mãos dadas são um símbolo desse afeto que vence as relações virtuais e holográficas - são o contato pele a pele que mais se conecta com a essência de ambos, na minha modesta opinião. Mais que o sexo, sem dúvida, cujo destino é morrer. Porque as mãos dadas selam uma espécie de pacto, um "estou contigo, ao seu lado, stand by me". Como diz Mario Benedetti, no seu poema musicado e depois cantado pela Alaíde Costa: "En la calle, codo a codo/Somos mucho más que dos". Como pede também Drummond, que não nos afastemos muito: "vamos de mãos dadas".
E pensar que a distância entre a ilusão e a verdade pode ser vencida por um gesto tão simples, tão ao alcance... das mãos.

domingo, 4 de maio de 2014

Amores que se escolhem

O que leva uma pessoa que tem rinite alérgica a adotar não um, mas DOIS gatos? E ainda mais num momento de contenção de despesas e necessidade de reflexão - será uma autossabotagem? Ou será uma forma inconsciente de cura - da alergia, mas também da necessidade de ter controle? Também acho que é uma forma de dar afeto a quem precisa (e o aceita de bom grado).
O fato é que eu queria um gatinho só, mas a cuidadora, Carol, não queria separar os dois irmãos grudados, que ela chamava de Tico e Teco. Combinamos fazer um test-drive pra ver se eu me adaptava - não só porque nunca tive gato, mas porque desconfio fortemente que sou alérgica à saliva dos bichanos.
Para incrementar o quadro, eles chegaram numa época de estiagem, fatal para os alérgicos como eu. À minha crise de rinite seguida de sinusite emendou-se uma gripe. E por isso tudo a casinha deles fica na varanda. Acesso negado, claro, ao meu quarto (até porque, embora respeite quem faça isso, acho que cada um no seu quadrado é ótimo, bichos de um lado, humanos de outro).
A adaptabilidade deles me encanta e ensina: também não faço a linha "sou escrava do meu bicho" (pelo menos por enquanto!), então estabeleço muitos limites. Claro que eles são naturalmente teimosos - tentam burlar a vigilância duas, três, quatro vezes -, mas também são inteligentes, e acredito que entendem as regras da boa convivência. Mesmo levando umas broncas, são carinhosos (especialmente o Chico, maior que o irmão Zen, um pouco mais arisco).
E assim é: devemos ficar juntos, a menos que a vida nos separe, por uns bons 15 anos. Imagino uma vida mais livre para eles também daqui a pouco, quando eu tiver um cantinho mais com minha cara, uma vida mais a ver comigo. Pretendo continuar viajando, mas agora somos três. Nada disso me assusta, porém. Resolvi enfrentar a alergia por eles, mas principalmente por mim, que quero poder respirar com toda força dos meus pulmões.

sábado, 3 de maio de 2014

Cozinha alquímica

Cozinhar é mais que prazer e terapia, é alquimia. Sinto uma alegria enorme quando algo que fiz fica bom e agrada o meu paladar e o dos convivas, especialmente as receitas que faço pela primeira vez.
Em compensação, fico estupefata quando algo cuja receita segui à risca não dá certo - foi assim com o promissor crème brûlée que fiz outro dia. O sabor tinha ficado perfeito, mas ele simplesmente não assou: sob uma camada um pouco mais firme, ele continuou líquido mesmo após 1 hora de forno. Ainda tentei trapacear, voltando o líquido para uma panela e acrescentando 1 colher de amido de milho, mas a receita se perdeu, até o gosto da baunilha desapareceu. Incroyable!
No mesmo dia, testei uma receita de boeuf bourguignon do Claude Troisgros, que leva um pouco de chocolate meio amargo. Alegria, alegria! Ficou perfeita (nem deu tempo de fotografar). Não foi a primeira vez que fiz o boeuf bourguignon, mas amei poder usar a panela de pressão e ter uma carne maciíssima em vez de ficar 3 horas cozinhando - tudo bem que adoro a ideia de volta às origens e sonho com meu fogão à lenha em algum lugar deste mundo, mas também sou uma mulher prática (aliás, minha vida mudou quando investi numa panela de pressão com válvula de segurança).
Outro dia ainda, fiz uma moqueca e saiu maravilhosa. Não é difícil, mas é aquela história de entender a receita, descobrir as particularidades dos ingredientes - camarão, por exemplo, emborracha quando cozinha demais.
Assim, de descoberta em descoberta, faz-se a cozinha. No caso dos experimentos de confeitaria, vi que o Fermix da Dona Benta é uma porcaria e que a manteiga Ambassador da Président é muito ruim pra cozinhar, pior que margarina nacional comum. Só sei porque usei. Aprendi truques no curso da EduK com a maravilhosa Carole Crema, chef pâtissier e dona do La Vie en Douce. E estou ansiosa para testar tudo, e aprender, aprender.



Atrevimento certeiro: moqueca





Tiro n'água: crème brûlée frustrado

Cabeceira

  • "Arte moderna", de Giulio Carlo Argan
  • "Geografia da fome", de Josué de Castro
  • "A metamorfose", de Franz Kafka
  • "Cem anos de solidão", de Gabriel García Márquez
  • "Orfeu extático na metrópole", de Nicolau Sevcenko
  • "Fica comigo esta noite", de Inês Pedrosa
  • "Felicidade clandestina", de Clarice Lispector
  • "O estrangeiro", de Albert Camus
  • "Campo geral", de João Guimarães Rosa
  • "Por quem os sinos dobram", de Ernest Hemingway
  • "Sagarana", de João Guimarães Rosa
  • "A paixão segundo G.H.", de Clarice Lispector
  • "A outra volta do parafuso", de Henry James
  • "O processo", de Franz Kafka
  • "Esperando Godot", de Samuel Beckett
  • "A sagração da primavera", de Alejo Carpentier
  • "Amphytrion", de Ignácio Padilla

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