domingo, 20 de março de 2016

A liberdade também leva embora









Quando Chico e Zen chegaram à minha casa para nos conhecermos, não puderam ficar de pronto. Eu não ia passar a noite lá, então pedi à tutora que os trouxesse no dia seguinte, para que ficassem definitivamente. Antes de eles irem, já os dois na caixa de transporte, senti um toque macio sobre o meu pé (eu estava parada ao lado da caixa, conversando com Carol): era a patinha de Chico, que me acarinhava, me reconhecia como sua nova família.
Desde então, a aceitação mútua foi irrestrita, e os dois gatinhos se tornaram meus companheiros de todas as horas. Zen mais falante, Chico mais voltado para a ação. Aqui no sítio, meu gatinho-cachorro vinha correndo quando eu o chamava, me acompanhava à horta e na hora de estender roupas. Gostava de dormir no colo de Guga. Trazia presentes toda noite - quando percebeu que não gostávamos das baratas, passou a trazer folhinhas. Parecia grato por ter recebido de uma hora pra outra tanto espaço, tanta liberdade. Ronronava ao roçar nas nossas pernas, contava o que tinha visto em suas andanças. Quando acordávamos, ele já estava em casa, e o chão, coberto de folhinhas que ele trazia no seu vaivém noturno.
Então, há dois dias, quando acordei, ele não estava em casa. Não apareceu quando abri as janelas. Não veio correndo quando eu chamei. E no calado do meu coração veio a certeza de que ele não viria mais.
Assim como ele foi explorar o quintal do vizinho nos primeiros dias, ele provavelmente foi espiar outras redondezas interessantes. O que aconteceu, não sabemos. Talvez um encontro infeliz com cachorros da vizinhança, talvez tenha se perdido, talvez então tenha sido achado por alguém, que o viu tão bonito e o levou consigo. Mais não quero aventar, porque fico triste. Ontem, cada passo que eu dava para espalhar cartazes com sua foto parecia me distanciar mais do meu Chiquito.
No fundo, eu sabia que isso poderia acontecer mais cedo ou mais tarde. Aqui, ou em outro lugar, já que pensava em me mudar de qualquer modo para um lugar aberto. No caso de Chico, a liberdade adquirida parecia grande demais para ele. Eu sempre procurei dizer a mim mesma, à guisa de pré-consolo, que o normal é que os bichos atendam ao chamado selvagem, que a qualquer momento (especialmente os gatos) podem ir embora. Mas dói.
E é na ausência de outro ser que sinto maior o preço cobrado pela irresistível liberdade.

quarta-feira, 2 de março de 2016

Uma horta que nasce e gente que aprende



Eu estava toda feliz acompanhando o despertar das mudinhas de ervas quando um dia deparei com um sapão dentro de um dos vasos - e pior, ele já havia passado pelos outros, esmagando todas as recém-nascidas.
O primeiro sentimento, claro, foi de cansaço-frustração. Em seguida, a resolução de começar tudo de novo, agora plantando diretamente no chão, no espaço que reservamos para a horta menor. Mas então percebi que os cachorros e os gatos, que gostam de correr por aquele espaço, também podiam esmagar as plantas. Pedi ao marido para cercar a horta para somente então semear de novo.
Agora falta apenas finalizar a porta, mas lá fui eu semear rúcula, couve, tomate, agrião, com ajuda de Guga. Ainda no esquema tentativa e erro (e acerto) para aprender a cultivar, vamos descobrindo também soluções para o dia a dia, como remédios sem veneno para evitar fungos e formigas (leite fresco, o santo bicarbonato - usado também para branquear roupas -, borra de café), de que maneira cercar a horta e até mesmo como proteger nossas botas de trabalho das aranhas e outros bichos (a touca descartável tem, afinal, uma utilidade utilíssima).

Fora da ordem






Então eu vim. Cheguei de mala e cuia, carregando dois gatos debaixo do braço. Deixei os amigos antigos e novos espantados, por diferentes razões.
Os gatos logo se adaptaram, e trazem folhas, cigarras e de vez em quando baratas de presente, oh God! Zen fica extasiado diante das libélulas e Chico pratica arvorismo amador. 
Quanto a mim, nem posso dizer que me "adaptei", embora seja uma pessoa naturalmente adaptável. Aliás, nem havia pensado sobre isso, somente quando fui indagada (várias vezes já). Só trouxe mesmo o que era meu, e as diferenças ficaram por conta das questões externas, alheias a mim. Ah, é difícil achar creme de leite? Usemos leite de coco. Difícil encontrar verduras no mercado? Plantemos as nossas. E para vencer distâncias? A pé, como sempre, ou de bicicleta. Os pés incham nas sapatilhas urbanas? Bora usar sandálias de couro típicas. E provar abacate, coco, limão, acerola, siriguela, caju tirados do pé. Quando sopra o vento fresco do final da tarde, sentar um pouco nas cadeiras da quase-varanda para ver o azul do mar no horizonte e o céu cor-de-rosa logo dando lugar às estrelas. 
É, acho que, não fosse eu tão adaptável, a adaptação já teria tudo pra dar certo. 

Rearranjando as memórias






Gosto de trazer souvenirs de viagens. Gosto de ganhar souvenirs, um sinal de que alguém se lembrou de mim em outro lugar. Cada vez mais, escolho souvenirs que tenham a ver com meus espaços - não compro mais "qualquer coisa" só para dizer que estive em tal lugar. Prefiro até objetos que tenham outra utilidade além da de lembrar algo - assim, a memória de coisas queridas se integra ao cotidiano.
Quando fui organizar minhas miudezas-souvenirs, notei que se dividiam em subgrupos principais: proteção, recipientes e bichos. Eram pequenas coleções, e assim as distribuí entre os livros.
*
Enquanto reorganizava visualmente as memórias, lembrei de situações em que dividi experiências com alguém que tinha uma lembrança completamente diferente do que ocorreu - aquela coisa de uma única versão puxando a sardinha para o seu lado, que tem muito de memória seletiva. Eu também faço isso, confesso, ainda que sem querer. Edito, às vezes; olho como quem fotografa, deixando parte da imagem de fora.
Depois me ocorreu que, como eu edito e fotografo, muita gente prefere reinventar suas lembranças. Recria-as mesmo, depois de algum tempo sugere uma nova versão para o que hoje é memória. Também é uma espécie de seleção, mas com descarte total, sem direito a "reserva técnica".
Porque lembrar não é algo automático. Lembrar exige coragem, principalmente quando as memórias não são das mais agradáveis. Podemos reorganizar, editar e até descartar, mas evitar o lembrar faz de nós seres incompletos. Quem somos, senão o que vivemos? O que vivemos, senão o que lembramos?

Cabeceira

  • "Arte moderna", de Giulio Carlo Argan
  • "Geografia da fome", de Josué de Castro
  • "A metamorfose", de Franz Kafka
  • "Cem anos de solidão", de Gabriel García Márquez
  • "Orfeu extático na metrópole", de Nicolau Sevcenko
  • "Fica comigo esta noite", de Inês Pedrosa
  • "Felicidade clandestina", de Clarice Lispector
  • "O estrangeiro", de Albert Camus
  • "Campo geral", de João Guimarães Rosa
  • "Por quem os sinos dobram", de Ernest Hemingway
  • "Sagarana", de João Guimarães Rosa
  • "A paixão segundo G.H.", de Clarice Lispector
  • "A outra volta do parafuso", de Henry James
  • "O processo", de Franz Kafka
  • "Esperando Godot", de Samuel Beckett
  • "A sagração da primavera", de Alejo Carpentier
  • "Amphytrion", de Ignácio Padilla

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