terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

A urgência de Almodóvar e Campion nos dias de hoje

Uma das poucas certezas que tenho na vida é que amo Pedro Almodóvar. Pode até haver um filme dele que acho mediano, mas, de modo geral, no cômputo final, amo seu trabalho. Sempre me surpreendo, feliz, com as camadas que vou desvendando a cada película. Adoro as nuances hitchcockianas mais coloridas de seus closes e recortes, suas trilhas dramáticas ou tropicalmente alegres, mas principalmente suas personagens tão humanas e suas tramas profundas por mais corriqueiras que pareçam. Achei que não era possível amar mais, mas acabo de ver Madres paralelas, com Penélope Cruz. O feminismo, sempre presente na obra de Almodóvar, aparece devidamente repaginado, com questões LGBT urgentes, maternidade, estupro, identidade e a luta principalmente das mulheres para que a memória da violência não se perca - caso do reconhecimento dos corpos enterrados em uma cova de um povoado, nos primeiros dias da Guerra Civil (para mim, desde sempre, um período histórico de grande interesse). Absolutamente necessária hoje a fala de Janis, personagem de Penélope, para a jovem Ana (Milena Smit), de que ela deveria saber de que lado estava sua família durante a guerra e que esta não cessaria enquanto os corpos dos mais de 100 mil desaparecidos ao longo do regime franquista não pudessem ser enterrados por seus familiares. Aquele calor no coração que o chamado por justiça provoca, ai. Mas tenho certeza de que muita gente hoje em dia vai detestar esse chamado por justiça e liberdade de Almodóvar, como detestará também o filme de Jane Campion com 12 indicações ao Oscar, o maravilhoso Ataque dos cães
No caso de Campion, cria-se uma expectativa acerca da temática de seu filme, aparentemente um faroeste, porque o filme é ambientado em Montana, na verdade Nova Zelândia. Tudo parece ser, mas não é. O título em português irritou os não entendedores - o original é The power of the dog, homônimo do romance de Thomas Savage. Embora sim, o nome em inglês se relacione com a passagem bíblica apontada por Peter, personagem do excelente Kodi Smit-McPhee, não se perde em nada a metáfora do cão-demônio que ameaça a paz do casal Rose e George, vividos lindamente pelo casal na vida real Kirsten Dunst e Jesse Plemons (um dos meus atores favoritos no momento) - aliás, que cena mais delicada do mundo a de Rose e George tomando chá e dançando na planície! Não preciso nem comentar o trabalho do querido Benedict Cumberbatch, que tem a mesma habilidade de seu conterrâneo Ralph Fiennes para expressar um sofrimento arduamente contido. Se em Madres paralelas vemos as mulheres prontas para tudo - para lutar, para amar, para pedir ajuda, para enfrentar as consequências da verdade, seja qual for -, em Ataque dos cães, assistimos ao mundo machista engolindo a si mesmo por não aguentar a claridade ofuscante da verdade. 
Como dois filmes tão diferentes podem ter coisas em comum? Mais ainda: por que ambos podem ser tão importantes nos dias de hoje? A escrita do desejo proibido de Campion encontra a liberdade de ser de Almodóvar, e os dois caminham na busca da verdade, esse bem tão vilipendiado hoje, deformado a serviço de impostores, intolerantes, covardes. Porém, é importante que se diga que, embora Campion e Almodóvar lancem luzes sobre o obscuro, cabe somente a nós vermos. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Cabeceira

  • "Arte moderna", de Giulio Carlo Argan
  • "Geografia da fome", de Josué de Castro
  • "A metamorfose", de Franz Kafka
  • "Cem anos de solidão", de Gabriel García Márquez
  • "Orfeu extático na metrópole", de Nicolau Sevcenko
  • "Fica comigo esta noite", de Inês Pedrosa
  • "Felicidade clandestina", de Clarice Lispector
  • "O estrangeiro", de Albert Camus
  • "Campo geral", de João Guimarães Rosa
  • "Por quem os sinos dobram", de Ernest Hemingway
  • "Sagarana", de João Guimarães Rosa
  • "A paixão segundo G.H.", de Clarice Lispector
  • "A outra volta do parafuso", de Henry James
  • "O processo", de Franz Kafka
  • "Esperando Godot", de Samuel Beckett
  • "A sagração da primavera", de Alejo Carpentier
  • "Amphytrion", de Ignácio Padilla

Arquivo do blog