sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

Quem fala?

Acabei de ler outro livro de Elena Ferrante, Dias de abandono. Assim como em outras narrativas (os livros da tetralogia napolitana, A filha perdida, Mentiras que os adultos contam), há o contraponto entre a vida pobre em Nápoles e uma nova vida proporcionada pelo conhecimento, além dos desencontros amorosos. Mas aqui, desde a primeira página, há um quê de Simone de Beauvoir em A mulher desiludida - o que se confirma quase ao final, numa menção direta ao livro da filósofa e escritora francesa. 
Ambas, Ferrante e De Beauvoir, constroem uma narrativa do ponto de vista da mulher adulta que se vê diante de mudanças na vida a dois, com a chegada da maturidade e o surgimento de outro interesse amoroso ou outra meta por parte do companheiro. Não é difícil mergulhar nas narrativas de ambos os livros, identificar-se, sentir o mesmo, inclusive a perda do senso de realidade que há em Dias de abandono. O lugar de fala das personagens (nem estou falando das autoras, considerando aqui que Ferrante seja mesmo uma mulher) ajuda a fazer esse mergulho, pois soa bem convincente.
A propósito do assunto lugar de fala, há pouco tempo aconteceu uma suposta polêmica com Chico Buarque sobre sua canção "Com açúcar, com afeto", composta a pedido de Nara Leão, que a interpretava lindamente. Depois li uma entrevista de Chico dizendo que não houve polêmica, que ele desconhecia haver feministas revoltadas contra ele pelo teor machista da canção, que ele não disse que nunca mais cantaria a canção por conta disso. Produziu-se uma celeuma em torno de algo que não houve (é fake news que chama?). Chico disse que não canta mais porque é impossível continuar cantando todas as mais de 400 composições de sua autoria, e que essa música já tão datada não era mais cantada nem por Nara, que provavelmente a abominaria hoje. 
Um amigo meu, professor de literatura, escreveu que Chico quis retratar uma mulher que vive aquele tipo de relacionamento, está ciente dele, mas no final ela é que domina a coisa toda. É um ponto de vista. Concordo que a personagem parece ter consciência do que vive, o que não quer dizer que não sofra. Porém, como afirma Chico na entrevista, não há mais lugar para a mulher que se lamuria, que deixa de conquistar seu espaço por causa de um homem. Chico não tem, é claro, esse lugar de fala, porque é homem, mas, como artista, pode criar qualquer personagem. Como artista, pode ser que conceba personagens pouco convincentes, que erre a mão, não só em questões de gênero, mas de classe social e de raça. Mas, vejam só, Chico sempre foi elogiado por cantar a alma feminina como ninguém. Ainda acho que consegue, e ele se mostra consciente das mudanças femininas e feministas no tempo. A cantora Marília Mendonça, que morreu precoce e tragicamente, aos 28 anos, vinha mostrando o lado feminino do sertanejo, muitas vezes sofrido, nem sempre libertário, mas verdadeiro. Talvez isso seja justamente o que mais cativa, o que mais importa - a verdade iluminadora trazida pela ficção. 

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Cabeceira

  • "Arte moderna", de Giulio Carlo Argan
  • "Geografia da fome", de Josué de Castro
  • "A metamorfose", de Franz Kafka
  • "Cem anos de solidão", de Gabriel García Márquez
  • "Orfeu extático na metrópole", de Nicolau Sevcenko
  • "Fica comigo esta noite", de Inês Pedrosa
  • "Felicidade clandestina", de Clarice Lispector
  • "O estrangeiro", de Albert Camus
  • "Campo geral", de João Guimarães Rosa
  • "Por quem os sinos dobram", de Ernest Hemingway
  • "Sagarana", de João Guimarães Rosa
  • "A paixão segundo G.H.", de Clarice Lispector
  • "A outra volta do parafuso", de Henry James
  • "O processo", de Franz Kafka
  • "Esperando Godot", de Samuel Beckett
  • "A sagração da primavera", de Alejo Carpentier
  • "Amphytrion", de Ignácio Padilla

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