Quando pensei em escrever este post, estava impactada pela notícia de um estupro coletivo que aconteceu no Carnaval deste ano, em Buenos Aires, em pleno bairro boêmio de Palermo. Uma jovem deixou uma boate local na companhia de rapazes que viajavam de carro pela Argentina e foi estuprada por eles no interior do veículo, diante de uma padaria do bairro. Não sabemos se ela estaria viva pra contar a história se os donos da padaria, que estavam ali para abrir o estabelecimento pela manhã, não tivessem visto a estranha movimentação no interior do veículo e constatado, aterrados, que ali acontecia um estupro. Munidos de vassouras e aos gritos, marido e mulher avançaram contra os criminosos, que tentaram fugir, mas foram impedidos por outras pessoas da vizinhança. A moça estava tão dopada que disse não saber como tinha ido parar ali, mas percebeu, entre flashes de consciência, que estava sendo estuprada. Nem sei nomear o que sinto com uma notícia dessas.
Pouco tempo depois, um deputado bolsonarista-morista, que supostamente teria ido à fronteira da Ucrânia com a Polônia como integrante de um grupo de ajuda humanitária, declarou que as mulheres ucranianas eram "fáceis" porque eram pobres. Mesmo tendo sido punido pelo partido e pela opinião pública, é desolador que essa ainda seja uma visão de boa parte dos homens - no Brasil, inclusive, estimulada pela onda ultraconservadora que cobriu o país. Dói ouvir que há puta em toda parte, que esta seja a resposta automática diante do absurdo expresso pelo político.
Como o machismo não dá trégua, sobrou até pra Pedrito Almodóvar, a quem declarei de novo meu amor outro dia. Li um artigo pouco depois que chamava a atenção para a visão feminista torta em Madres paralelas, e acho que há uma certa razão quando se critica a construção da personagem de Penélope Cruz (que "usa" a jovem apaixonada por ela e ainda volta para o homem que duvidou da sua paternidade), mas mais ainda para a presença do estupro em alguns filmes do espanhol - Atame, Kika, Fale com ela, Volver, A pele que habito. No caso de Madres paralelas, até podemos pensar nas contradições vividas pelas mulheres até hoje, de se relacionarem erraticamente com boys lixo ao mesmo tempo que lutam por sua liberdade, afinal, ninguém é perfeito mesmo. Mas no caso dos outros filmes, e só falo dos casos de que me lembro, vê-se o olhar machista que persiste até mesmo em quem certamente foi vítima desse machismo.
Só para exemplificar a extensão da jornada-luta contra o machismo, indico o magistral documentário da Netflix baseado nos diários de Andy Warhol, editados por sua secretária Pat Hackett e lançados pouco depois da morte do artista. As imagens de época e os textos dos diários lidos por um artista que teve a voz modificada por inteligência artificial para se assemelhar à de Warhol são emocionantes e nos aproximam de uma época efervescente - também varrida pela onda conservadora - e de um homem solitário e provocador, revolucionário e contido, um nome fundamental para a completa transformação da arte contemporânea e da cultura de massas em todo o mundo. É tristíssimo que Andy não possa ter vivido o amor de forma plena, sufocado pelo preconceito de sua criação e da sociedade ao redor, que ele, que resistiu a uma saraivada de tiros, tenha assistido à morte de tantos amores e amigos, vitimados pela Aids, esse tsunami de horror dos anos 1980. Até mesmo Andy Warhol, homem branco, genial, bem inserido no circuito cultural novaiorquino, sofreu os revezes do machismo, muitas vezes de si contra si.
O machismo mata sempre. Quem for a favor da vida, do amor, da liberdade, do futuro, não pode ser a favor do machismo.