quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

O elogio da criatividade desorganizada contra a ordem nipônica de Marie Kondo

Tenho lido muitos textos atuais que tratam da desorganização como uma das características das pessoas criativas. Normalmente, eles defendem ser desorganizado como algo romântico, sem, portanto, embasamento científico, e até o associam a uma inteligência superior (já vi textos que afirmam que pessoas que reclamam muito e são bagunceiras são ainda mais inteligentes e criativas). 
Bom, até aí... que sorte a dessas pessoas! Eu, particularmente, não me incomodo com esse tipo de diferença desde que não precise aguentar reclamação o dia inteiro e bagunça sistêmica o tempo todo. Cada um é como é, e tudo bem, se isso não atrapalhar o convívio e a própria vida da pessoa bagunceira. Quando bagunça é algo incapacitante, impedindo alguém de conviver, trabalhar, ser saudável, sim, é um problema a considerar. 
Não sou a pessoa mais arrumadinha do mundo. Deixo muita coisa em cima da mesa, à espera de decisões. Quando arrumo, porém, estabeleço uma organização coerente, que me permite saber sempre onde está cada coisa. Não costumo esconder a bagunça em gavetas. Gosto de ter as coisas à vista, para não me esquecer de usá-las. Se me esqueço ou não uso, é porque não preciso delas. Desapego fácil de muita coisa - exceção maior feita aos livros e utensílios de cozinha e arte, claro. 
Na verdade, gosto de organizar. Como faço muita coisa ao mesmo tempo, gosto de saber que economizo tempo com a organização, sem precisar quebrar a cabeça procurando cada coisa. Uma das etapas que mais gosto quando cozinho é montar o mise-en-place, por exemplo. Por esse apreço pela organização é que me interessei pelo programa da Marie Kondo no Netflix.
Tinha já visto algo no Pinterest, algum esquema de arrumação doméstica criado por ela. Assisti Ordem na casa ao mesmo tempo que milhares de pessoas pelo mundo, ao que indicam os muitos artigos falando a respeito do programa, alguns bem, outros muito mal. Os que o criticavam falavam em nome da liberdade de ser bagunceiro-criativo, mas logo se percebia sob a crítica o repúdio a uma figura feminina, ainda por cima oriental (de outro mundo!), que vinha ensinar aos machos cis ocidentais a organizar suas vidas. Chamavam Kondo de arrogante pra baixo, "quem ela pensa que é" etc. etc. Eu fiquei bastante espantada - por que não ignorar simplesmente as lições dela e continuar abraçadinho com sua bagunça? Por que a preocupação com a crítica dos outros? Tinha caroço nesse angu, ou alguma sujeira debaixo do tapete. 
Tamanho foi o impacto das diatribes que logo surgiram os defensores do método KonMari. Li um texto ótimo no El País, falando sobre essas críticas, e também sobre as questões culturais por trás delas e do próprio método. O fato de Marie Kondo agradecer aos objetos antes de descartá-los,  reconhecer o que traz alegria, acordar os livros ou apresentar-se às casas que visita indica uma matriz xintoísta clara, um forte traço da cultura nipônica. Até mesmo a forma de rir e cumprimentar, que meu marido acha engraçada, me parece muito típica dos japoneses - não me causa nenhum estranhamento, porque sempre convivi com isso, na família ou no colégio. Essa cultura é o que muitos críticos têm combatido, e não o método lançado pela japonesa. 
Espanto deixado de lado, fui fazer meu 5S (método japonês também, gomenasai) com as dicas de Marie Kondo. Fica parecendo tudo óbvio quando se começa, mas quase tudo na vida é assim mesmo - é preciso que alguém abra o caminho para descobrirmos que aquilo sempre esteve ali. Algumas caixas, organizadores, o jeito certo de dobrar, arrumar deixando tudo à vista (lembram? do jeito que eu gosto), descartes necessários, e voilà, o espaço duplica, as roupas e objetos respiram, o ambiente todo respira. Todos respiramos. 

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Cabeceira

  • "Arte moderna", de Giulio Carlo Argan
  • "Geografia da fome", de Josué de Castro
  • "A metamorfose", de Franz Kafka
  • "Cem anos de solidão", de Gabriel García Márquez
  • "Orfeu extático na metrópole", de Nicolau Sevcenko
  • "Fica comigo esta noite", de Inês Pedrosa
  • "Felicidade clandestina", de Clarice Lispector
  • "O estrangeiro", de Albert Camus
  • "Campo geral", de João Guimarães Rosa
  • "Por quem os sinos dobram", de Ernest Hemingway
  • "Sagarana", de João Guimarães Rosa
  • "A paixão segundo G.H.", de Clarice Lispector
  • "A outra volta do parafuso", de Henry James
  • "O processo", de Franz Kafka
  • "Esperando Godot", de Samuel Beckett
  • "A sagração da primavera", de Alejo Carpentier
  • "Amphytrion", de Ignácio Padilla

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