Quando fazia terapia, era muito mais fácil estar atenta à sincronicidade, esse conceito junguiano para "explicar" acontecimentos que não têm relação causal, mas sim de significado. Tipo andar pela Avenida Paulista e quase ser atropelada por uma borboleta e depois topar com alguém usando uma camiseta com o nome do país que eu visitaria em seguida para na sequência ouvir alguém falando desse país. Ou estar vivendo um dia péssimo e estar dentro de um táxi e avistar uma menina atravessando a rua, e ela olhar para mim e fazer um sinal de positivo. Muitas vezes, as sincronicidades têm a cara de milagres cotidianos, envolvem pessoas que nunca mais veremos na vida.
Na última semana, porém, ela rolou de forma um pouco diferente. Estava terminando de ler o livro de Silvia Federici, Calibã e a bruxa, que trata da caça às bruxas e sua relação com o novo "papel" dado à mulher no capitalismo nascente. Tivemos de ir a Salvador para resolver umas coisas, e para fazer hora fomos ao cinema - infelizmente, só havia filmes dublados, e acabamos vendo, diante das opções infantis, um remake de João e Maria. Um pouco mais terrível, com Maria tomando o lugar da bruxa e os irmãos lançando-a no fogo sem piedade.
Nada disso tinha me chamado a atenção (até porque dormimos durante metade do filme) até assistirmos, na mesma noite, a um episódio da série Hunters, da Amazon, com Al Pacino. Trata-se de um grupo de caçadores de nazistas nos anos 1970 que acaba cruzando o caminho de uma investigadora do FBI - negra e lésbica.
Na verdade, foi um único comentário que a personagem fez que acabou ligando todos os pontos na urdidura. Ela perguntou à namorada se conhecia a história de João e Maria (!); disse que eram duas crianças alemãs, louras de olhos azuis, que encontram uma velha senhora que mora sozinha na floresta e que era, supostamente, uma bruxa. As crianças comem tudo o que a mulher lhes oferece para depois roubar-lhe a fortuna, a casa e a vida. A investigadora da série associa a ação das crianças ao ódio aos judeus - e Federici justamente mostra em seu livro como judeus, mulheres e hereges são colocados no mesmo caldeirão, associados à bruxaria por sua não adequação ao novo status quo. Embora João e Maria sejam personagens consagradas pelos irmãos Grimm no século XIX, a depreciação de mulheres (especialmente se independentes e consideradas inférteis) e judeus já acontecia desde o século XVI, e na Alemanha, ainda não unificada, isso só ganharia mais força, culminando no antisemitismo nazista do século XX.
Parece que tudo isso aconteceu para que essas relações entre machismo, racismo, intolerância e sociedade de consumo só ficassem ainda mais claras para mim, mostrando a extensão dessa rede de fatos históricos que tece uma imagem tão sombria da humanidade. Triste, mas claríssima.
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