Na verdade, faz quase 120 dias que estamos em quarentena. E o que isso nos trouxe até agora? Para além da redução de atividade física e contato social e do aumento do cansaço, das comilanças e das incertezas quanto ao futuro: muitas reflexões. Sobre o que é ser pobre, preto, mulher, gay, índio, nordestino no Brasil. Sobre de que lado é possível estar nesta pandemia e depois dela, se dos que desejam que muitos possam mais ou dos que querem continuar fazendo parte dos poucos. Sobre o fato de o Brasil ter problemas de identidade desde sempre - já que aqui a alienação, de si e do outro, é a regra - e que por isso os brasileiros não se enxergam como povo, mas sempre como indivíduos com mundo particulares que mimetizam o estrangeiro, e por isso é tão difícil implantar a democracia, se não há quem se veja como parte de um todo maior e próximo a si, nem quem deseje lutar por seus iguais, partes também desse grande todo.
Manuel Bandeira já dizia que o que fazíamos era macaquear a sintaxe lusíada. É só transpor essa ideia para a imitação brasileira da cultura gringa nas camadas média e alta da população. O mais é o povo, que está se lascando na pandemia, mas também sobrevivendo graças à sua própria solidariedade. Faz tempo que os pobres sabem que não podem contar com o governo para nada. Ao menos a pandemia fez cair as escamas dos olhos de uma parcela da população, do grupo dos que se importam.
Claro que sabíamos da desigualdade - eu me incluo neste grupo, pois, mesmo tendo tido uma longa vivência periférica, nunca me faltou um prato básico de comida nem um teto nem escola -, mas havia um véu entre nós e ela. Mais adivinhávamos do que víamos. Pois o véu foi arrancado, e o horror não nos deixa outra alternativa senão tomar posição. Contra a iniquidade, a indiferença, as violências de todo tipo.
Ainda bate um desânimo grande, porque a distopia governamental não tem fim, o vírus está lá fora, a iniquidade cobra seu preço, e mesmo assim não sabemos o que terá sobrado do mundo quando deixarmos o bunker.
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