quarta-feira, 15 de julho de 2020

Viola, Chimamanda e o racismo nosso de cada dia

Por estes dias, li uma declaração de Viola Davis sobre sua infeliz participação no filme Histórias cruzadas. Já escrevi sobre este filme aqui - eu gostei muito da ideia de solidariedade, da união que faz a força,  da compaixão, mas não dá para ignorar o argumento do branco (no caso, branca) salvador. Somente a personagem de Emma Stone para dar voz às pobres e exploradas empregadas negras - e só porque ela é também uma desajustada, que nem esperava fazer "tanto assim" pelas outras mulheres. 
Viola tem toda razão de dizer que se arrepende desse papel, apesar do sucesso do filme. Porque é como se participasse de uma farsa, a de dizer que está tudo bem entre brancos e negros, que o racismo não existe, mal existiu algum dia. Hoje, que tenho lido e aprendido muito mais sobre racismo sistêmico, por exemplo, ouvindo o excepcional professor e advogado Sílvio Almeida, só posso apoiar sua postura e até gostar um pouco menos do filme, ainda que as atuações  de Viola e de Octavia Spencer sejam magistrais. 
Além de estar atenta ao que dizem meus (poucos) amigos negros, sempre procurando rever minhas falas e atitudes para não replicar mais racismo e, pelo contrário, combater as atitudes racistas, tenho lido autoras negras. Quer dizer, vinha lendo mais MULHERES, e agora mulheres NEGRAS. Além dos socos no estômago de Toni Morrison - que já conhecia de Jazz e, recentemente, do terrível The bluest eye -, só tenho a me encantar com a jovem e prolífica Chimamanda Ngozi, de quem já li Hibisco roxo, Sejamos todos feministas e, agora, Americanah. 
Se em Hibisco roxo a protagonista fala de uma realidade quase tribal eivada de fé e violência, quase como se contasse uma história oculta atrás de um véu, em Americanah a personagem principal escancara tudo que há no mundo global - subdesenvolvimento, corrupção, racismo, machismo, academicismo, subemprego. A sensação que tenho de passar a conhecer a realidade de racismo frequente por que passam as pessoas negras se mescla com a já conhecida de, como mulher, ter vivido e observado algumas coisas bem semelhantes acerca de relacionamentos, autoestima, conhecimento, trabalho, adequação, estar no mundo. No entanto, a experiência de uma mulher negra sempre pode ser mais complicada em vários aspectos. 
Parece estranho que a gente possa aprender tanto com nossas iguais, mulheres, sejam brancas ou negras. Mas é que temos nos dado conta de que o mundo foi todo esse tempo sendo escrito e significado por homens, homens brancos. E o mundo feminino é tão criativo, fértil, profundo e coerente e ecoa tão tremendamente dentro de nós que é impossível não querer conhecer mais de tudo o que está sendo feito para saber mais de nossas irmãs e, portanto, de nós mesmas. Um caminho sem volta, como todo conhecimento de fato precioso. 

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Cabeceira

  • "Arte moderna", de Giulio Carlo Argan
  • "Geografia da fome", de Josué de Castro
  • "A metamorfose", de Franz Kafka
  • "Cem anos de solidão", de Gabriel García Márquez
  • "Orfeu extático na metrópole", de Nicolau Sevcenko
  • "Fica comigo esta noite", de Inês Pedrosa
  • "Felicidade clandestina", de Clarice Lispector
  • "O estrangeiro", de Albert Camus
  • "Campo geral", de João Guimarães Rosa
  • "Por quem os sinos dobram", de Ernest Hemingway
  • "Sagarana", de João Guimarães Rosa
  • "A paixão segundo G.H.", de Clarice Lispector
  • "A outra volta do parafuso", de Henry James
  • "O processo", de Franz Kafka
  • "Esperando Godot", de Samuel Beckett
  • "A sagração da primavera", de Alejo Carpentier
  • "Amphytrion", de Ignácio Padilla

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