quinta-feira, 29 de abril de 2021

Multi, pluri, inter, trans

Mulher de sorte, encontrei uma disciplina on-line na Faculdade de Educação que tinha tudo a ver com minhas pesquisas solo atuais. Mais sortuda ainda, fui aceita como ouvinte pelo professor. Fiquei felicíssima, porque ia ouvir muitos alguéns - o professor e todos os interessados no tema - tecendo relações entre multiculturalismo, educação e Paulo Freire, bell hooks, Rancière e tal. Freire, por quem me apaixonei antes da faculdade e que voltou muito a propósito e com força nos últimos tempos, sobretudo nos meus questionamentos sobre existir no mundo e fazer o que dessa existência, e bell hooks, que conheci há pouco tempo e que já amo. 
Fiquei animada ao atestar a organização do professor, que disponibilizou os textos e o link das aulas com antecedência. Apliquei-me nas leituras, em princípio mais simples para mim. Em princípio. 
Como estou me iniciando nos debates específicos sobre multiculturalismo, tema premente, fico mais observando que arriscando pitacos. E só depois de muito ouvir resolvi organizar minhas ideias e compartilhá-las, por escrito, com o professor, que parece muito disponível na interação para além da videoconferência semanal.
Enviei-lhe então um e-mail com várias percepções pessoais sobre o tema, considerando as sincronicidades todas que têm acontecido desde que tive um clique a respeito. 
Porque havia assistido a Ailton Krenak no Roda Viva, com sua linda imagem da dança cósmica, falar sobre os inter-universos possíveis na imensa diversidade indígena, a nos lembrar que índio não "é tudo igual". Como povos negros. Como povos orientais - e me lembrei de minha irmã sendo agredida no metrô do Rio, chamada de "chinesa suja", o preconceito e a ignorância mastigados pela boca de uma mulher idosa. Essa mulher provavelmente gostaria do texto de João Pereira Coutinho, colunista da Folha, intitulado "Escrita inclusiva não passa de uma fantasia da indústria de justiça social", que li um dia depois de ver Krenak brilhando na TV Cultura - o cronista ultraconservador ridicularizava as reivindicações culturais particulares dos grupos não dominantes, dizendo, em resumo, que dali a pouco a ciência seria contaminada pelas mandingas próprias desses grupos (chegando a dizer, para se ter a medida de seu preconceito, que seriam colocados búzios sobre os olhos de um paciente em vez de se receitar um fármaco qualquer). No texto de Coutinho, em inteira oposição à fala de Krenak, o padrão da branquitude conservadora, talvez defensora do multiculturalismo desde que adequado a esse padrão.
Escrevi também porque, sincronisticamente, havia assistido a Sankofa, na Netflix, documentário sobre as Áfricas possíveis e existentes na viagem de um fotógrafo e de um professor universitário. De novo, as diversidades exigindo serem vistas. 
Ainda por cima, ouvi Rita von Hunty indagando sobre quem cuida das crianças trans, em meio ao debate da aprovação do PL 504, que pretendia proibir a publicidade LGBTQ+. Rita falava da insistência no padrão familiar hetero e branco que acaba por, de novo, invisibilizar todos que sejam diferentes dele, como a população negra e LGBTQ+. Como Fernando, Alexandre e Lucas, os garotos desaparecidos no Rio de Janeiro desde dezembro e sobre quem ninguém fala, como Keron e Pietra, jovens trans assassinadas no Ceará este ano. 
Falei da minha consciência tardia acerca dos abusos e da falta de representatividade de mulheres, não heteros e não brancos. Tão perto dos 50 anos me dei conta de que sempre estivemos à margem e que acabamos reproduzindo os estereótipos, procurando nos igualar ao padrão correto e, pior, fortalecendo a opressão. 
Comentei sobre minhas pesquisas recentes e sobre o que ouvi de colegas do curso atual a respeito de acolhimento, lugar de fala, assumir ou não o privilégio branco e como tudo isso me leva a pensar de que forma podemos construir um mundo de aceitação das diversidades, uma aceitação de fato, integral, levando em conta que nem sempre haverá harmonia entre elas. Falei sobre a angústia que permeia esses questionamentos, já que estamos tão condicionados a chegar a conclusões últimas, a solucionar coisas e, por isso, sofremos com a falta de repostas. Que talvez as perspectivas nos livrem da completa angústia, sobretudo se forem pautadas na justiça social. Que talvez não precisemos de uma resposta pronta, mas de um caminho possível, trilhado sobre luta, arte, compaixão e justiça. Porque penso que esse caminho teria mais a ver com a ideia de se deixar atravessar pelo outro, de aceitar o plural, de promover a interação, de não se render ao conceito do mero multiculturalismo que temos discutido. 
Ele me respondeu rapidamente, lamentando uma "visão fechada", que depois leria minha "carta" com calma. Ah, como senti não me ter feito entender! Especialmente por quem eu cria que pensasse o mesmo que eu. Mas, para além de uma inépcia minha para a clareza da escrita, isso denota também os riscos próprios da transculturalidade, da pluralidade, da diversidade, enfim. Mesmo que nos ofereçamos de peito aberto, nem sempre o outro desejará passar através de nós. Talvez, apesar do discurso, não saiba como. Talvez, apesar do discurso, o problema seja justamente o silenciar, como diz Krenak. 

domingo, 18 de abril de 2021

Thelmas & Louises

Outro dia, revi Thelma e Louise (1991) na TV. Na minha memória, é um dos primeiros filmes com protagonistas femininas e a tratar de temas sensíveis para as mulheres, mesmo sendo dirigido por um homem, Ridley Scott. Assistindo-o hoje em dia, porém, parece até um pouco ingênuo, apesar da violência contra a mulher. Ou talvez seja pelo fato de, além de possuir um olhar masculino, o do diretor, o nosso olhar feminino ter mudado após 30 anos, e tudo o que vivemos ter ficado tão às claras.  
Não foi um acaso eu ter visto esse filme. Na verdade, procurei por ele, após ter criado com queridas de longa data um grupo de WhatsApp, Thelmas & Louises. Porque, para além das aventuras e desventuras vividas pelas maravilhosas Susan Sarandon e Geena Davis, a película, na minha opinião, fala sobretudo sobre amizade. Amizade entre mulheres, algo que tem sido redescoberto com a importância da sororidade nos debates feministas atuais. 
Conheci as cinco integrantes do T&L no trabalho. Lembro-me de um amigo de lá me dizer que eu era muito ingênua de pensar que colegas de trabalho formavam uma família - ele, inclusive, é um irmão para mim até hoje. Mas não se tratava disso: eu sabia que a maioria das pessoas só passaria por mim como águas heraclitianas, para nunca mais voltar. E que uma parte, apenas uma parcela mesmo, ficaria, desembarcaria no meu porto e fundaria cidades no interior, criaria memórias e que tais. Assim tem sido com as cinco, há quase 30 anos. 
Tão diferentes somos! Quantas combinações de qualidades diferentes há em cada uma, mas vejo em todas, em momentos diversos, humor, inteligência, sensibilidade, força e muita doçura. Sinto, mesmo à distância, a dor de cada uma, vibro com o sucesso de cada uma. Em nossas lives, vejo ainda as meninas que trabalhavam comigo, mas sobretudo com quem organizava amigos-secretos, festas de aniversário e à fantasia, com quem viajava, ria e compartilhava dramas, com quem aprendi tanto nesse longo aprendizado de ser e de ser mulher. Estão aí, elas. As mesmas meninas, o mesmo afeto. 

domingo, 11 de abril de 2021

Aquele empurrãozinho na criatividade

Outro dia, uma amiga de faculdade recém-reencontrada nas redes sociais comentou que ela sempre precisa de estímulos externos para criar algo. Que ela não era naturalmente talentosa ou criativa, que para escrever um texto precisava de um acontecimento pitoresco, que executava as coreografias de dança direitinho mas sem brilhantismo etc. Identifiquei-me completamente com ela. Não sei criar coisas do zero. Era meio atrapalhada no flamenco, embora amasse estar ali no meio daquelas palmas e sons de tacones. Escrevo textos mais burocráticos que criativos. Preciso de modelos para desenhar. 
Depois fiquei pensando que a criatividade, na maioria das vezes, também se cria. Como ser mulher, não se nasce criativo, talvez "torne-se". Eu já comentei que, quando necessário, me meto a aprender algo para dar conta de um projeto. Normalmente, aprendo o básico. Não me lembro de ter algum aprendizado muito aprofundado. Enfim. 
De posse da necessidade, arregaço as mangas e mergulho as mãos na demanda. Senhora das demandas, isso sei que sou. Demanda, motivação, o empurrãozinho que me leva a criar. E assim ideias ganham corpo, como o convitinho para o chá de fraldas das gêmeas de Gleice. Aquarela e colagem. Aquarela, o quanto baste, e colagem, para suportar o desenho insuficiente. Sobre branco, sempre ele, a me dar espaço, a me permitir respirar. O espaço em branco, o próprio lugar da criatividade. 

Guiozas da Tchu, a revanche

Da única vez que fiz guiozas, elas ficaram boas, mas meio pesadinhas e feiosas. Agora, só agora, descobri que tem a ver com os tempos de sova e descanso e a forma de abrir a massa. Provavelmente, a outra vez, abri a massa inteira e usei cortador. Quem me deu as dicas agora foi de novo a Tchu, que manja muito das massas e, principalmente, de comida oriental. 
É preciso misturar farinha e água quente na proporção 2 para 1 (usei 300 g e 150 mL). Depois de agregar bem, deixar descansar 10 minutos dentro de um saco plástico para então sovar mais um pouco e então deixar descansar pelo menos 30 minutos dentro do saco. Na hora de abrir - o ideal é já ter o recheio pronto, e desta vez usei shimeji fresco, nirá, cebola, repolho, tudo picadinho e temperado com sal, shoyu e óleo de gergelim e levado a refogar -, é preciso furar a bola de massa no meio e então ir formando um círculo como se fosse um donut grande. Daí se corta o donut de massa duas vezes, para criar duas minhocas, como quando a gente faz nhoque. Corta-se cada minhoca em pedaços pequenos, girando a 90 graus a cada corte, para manter a seção do corte mais redonda. Achata-se com a mão cada pedaço, que é aberto com rolo. Um a um. Imagine a diferença que faz todo esse processo.
Então é só rechear e fazer as famosas dobras (aqui já bateu aquela impaciência e fiz cada guioza de um jeito, mas a massa é tão boa que até que tudo bem, ficou infinitamente melhor que da outra vez). Marido foi contrário a fritar as guiozas, então aproveitei para estrear, após uns 6 anos, minha panela de bambu. Protegi cada andar com papel manteiga furado a faca, para passar o vapor e não deixar as guiozas grudarem no bambu. Acoplei tudo em uma panela já com água e levei para cozinhar pelo tempo médio de 8 minutos. 
Para acompanhar, preparei um molho com shoyu, óleo de gergelim, gotas de limão, nirá picadinho e um pouquinho de molho de ostras. Ficou tudo delicioso. "Profissional", disse Guga. Acho que esse é o elogio máximo que poderia receber. 

quarta-feira, 7 de abril de 2021

Tem gente com fome em meio ao genocídio

Tenho cá pra mim que toda a extravagância jupiteriana chocolateira foi para aplacar a tristeza com o Brasil chegando a 4 mil mortos por dia, mais de 330 mil pessoas em um ano. Porque realmente não sabemos o que será. Ainda rolou brownie a pedido do marido, uma comilança pascoalina sem fim nos últimos dias do fechamento de trabalho. 
Mas também já decidi que no lugar desse tipo de "consolo" vou me organizar para ajudar outras pessoas a terem o que comer, a última fronteira entre o humano e o desumano. Dá pra cozinhar pra galera? Não, com pandemia não dá. E também estamos longe dos grandes centros, onde costuma haver sempre quem se mobilize para preparar e distribuir comida a quem precisa. Que podemos fazer? Doações para esses projetos preciosos. Quanto? Quanto pudermos, enquanto pudermos. 
Volto a dizer da importância da luz que essa pandemia jogou sobre a iniquidade nacional. Sempre soubemos que assim era. Mas, como disse minha amiga Liu, a questão agora é: o que eu posso fazer para ajudar? Porque a luz pandêmica também mostra como somos privilegiados em comparação a quem não tem o básico. 
Não sei se estamos testemunhando por fim o declínio capitalista de que falava Marx. Temos visto, porém, os efeitos extremos de viver em uma sociedade capitalista, baseada na exploração de uma pessoa por outra, ou de muitas pessoas por poucas. Enquanto, durante a pandemia, aumentou o número de bilionários no país, cresceu em quase 10% o número de pessoas em pobreza extrema, que não tem o que comer nem a quem recorrer, porque o Estado brasileiro, coerente com a desigual sociedade brasileira, dá completamente as costas aos miseráveis. Para o Estado e o atual governo, quanto mais pobres morrerem, tanto melhor - é uma forma sórdida de se resolver o problema da pobreza, por meio da eliminação, por uma torta seleção "natural". 
Gente com fome, o auge da iniquidade. Tantas, tantas pessoas. O horror arrancou o véu só pra que a gente visse atrás dele todas essas pessoas. Tantas, tantas. Que a gente possa aprender a realmente dividir o pão, iniciar a mudança. 

sexta-feira, 2 de abril de 2021

Sandes cubanos, sorvete de chocolate perfeito e extravagância chocolateira

Na semana passada, fiz os sanduíches cubanos do filme Chef, com o Jon Favreau. Usei lombo fatiado e marinado em suco de laranja e limão, cominho, alho, azeite durante um dia inteiro, presunto de Parma, queijo minas padrão, picles agridoce e mostarda amarela. Não deu tempo de fazer pão, então usei pão francês do supermercado mesmo. Grelhei lombo (podia ter cortado mais fino), tostei o pão besuntado em manteiga, montei o sandes com lombo, presunto, queijo, picles e um fio de mostarda e levei, de novo besuntado em manteiga derretida, ao George Foreman. Ficou uma delícia, a marinada é um perfume só - mas cortaria mais fino o lombo e deixaria mais um dia marinando. Uma observação importante: esses sandes, embora chamados cubanos, parecem ser criação de expatriados que vivem em Miami, tipo o nosso bauru, inventado por um paulista.
De sobremesa, o melhor sorvete de chocolate que já fiz. Usei 200 mL de leite condensado caseiro, 200 mL de creme de leite, 100 mL de leite de coco, 1/2 xícara de chocolate em pó 70% cacau. O leite condensado foi feito com 50 mL de água quente, 60 g de xilitol e 60 g de leite em pó. Perfeição.
E, pra continuar na farra chocolateira, fiz uma extravagância. Lá no querido grupo ECDE dei de cara com os chocolates Monjolo, feitos com cacau baiano pela Luana Vieira, de Barão Geraldo, Campinas. E um ovo de Páscoa de chocolate branco com limão siciliano, gengibre e castanha de caju. E barras rústicas. E um creme de cupuaçu com amendoim e cupuaçu cristalizado, de comer rezando - comi o pote todo em 3 dias, já que marido não curte muito cupuaçu, pra minha sorte (aliás, o creme também é produzido na Bahia, em Olivença). O ovo de Páscoa de 200 g é caro pros nossos padrões, equipara-se em preço a um da Kopenhagen. Mas vale cada centavo - sério, os melhores chocolates que já comi foram estes da Monjolo, que, ainda por cima, são lindos (confesso que tive um certo preconceito de classe quando vi a sofisticação toda, e logo pensei que o pensamento e a ação de esquerda não pode ser restringido por isso, especialmente no contexto capitalista em que vivemos). Só houve o incidente de o pote de creme de cupuaçu ter amassado o ovo. Também a barra rústica não era o sabor que eu queria - são dois, e eu achava que tinha indicado o de frutas secas, mas Luana também não perguntou, e acabou enviando justamente o outro, com frutas secas e flores. E ela tinha prometido enviar uns bombons de presente, mas não rolou. Pontuei tudo isso com ela, que me prometeu enviar outro ovo e a barra correta. A ver. 

Cabeceira

  • "Arte moderna", de Giulio Carlo Argan
  • "Geografia da fome", de Josué de Castro
  • "A metamorfose", de Franz Kafka
  • "Cem anos de solidão", de Gabriel García Márquez
  • "Orfeu extático na metrópole", de Nicolau Sevcenko
  • "Fica comigo esta noite", de Inês Pedrosa
  • "Felicidade clandestina", de Clarice Lispector
  • "O estrangeiro", de Albert Camus
  • "Campo geral", de João Guimarães Rosa
  • "Por quem os sinos dobram", de Ernest Hemingway
  • "Sagarana", de João Guimarães Rosa
  • "A paixão segundo G.H.", de Clarice Lispector
  • "A outra volta do parafuso", de Henry James
  • "O processo", de Franz Kafka
  • "Esperando Godot", de Samuel Beckett
  • "A sagração da primavera", de Alejo Carpentier
  • "Amphytrion", de Ignácio Padilla

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