Com essa história do sumiê retornam as questões de pertencimento. Quando vou à Liberdade (como hoje, quando fui à Livraria Sol para comprar um pincel), sempre tenho a sensação de fazer parte daquele universo oriental. Puxo papo com as vendedoras, senhorinhas japonesas que lembram minha mãe, e tenho certeza de que elas não entendem meu olhar enternecido. Mesmo sem falar japonês, sem partilhar de todos os costumes, uma centelha de mim reacende quando boto os pés ali. Talvez por isso o origami e o judô, tão tardios, tenham parecido "naturais" quando aconteceram.
Também sinto o mesmo quando visito o Nordeste, claro. Parece que estou na sala de casa, tomando fresca com as portas abertas. Rio de felicidade, quase sentindo o vento no rosto, ao ouvir uma expressão conhecida desde a infância - "parado como um dois de paus", "malajambrado", "cabaré de asa", "sururu de capote". Fico muito, muito à vontade. E é essa sensação de estar à vontade na própria pele que eu chamo de pertencimento. Como é boa, como é
fundamental!
Clarice Lispector tem um texto lindo sobre pertencer. Foi originalmente publicado no JB, como crônica, e depois na coletânea
A descoberta do mundo. Ela diz que pertencer vem muitas vezes de sua força, e não de depender de alguém mais forte - deseja pertencer para que sua força "não seja inútil e fortifique uma pessoa ou uma coisa". Para não ficar com um presente embrulhado nas mãos sem ter a quem presentear. Não seria por acaso um dos aspectos da graça?
Ao final, Clarice fala, ao descobrir que pertencer é viver, de uma sede infinda, como quem, no deserto, bebesse as últimas gotas de água de um cantil. Aqui, agora, enquanto escrevo, imagino que viver/pertencer é mais como no deserto carregar um jarro d'água, que poderia derramar quando tropeçamos ou ir-se esvaziando quando damos de beber a alguém - mas, quase milagrosamente e ao mesmo tempo, vai se enchendo novamente da água trazida por outro passante. De forma abundante, até o fim.