sábado, 27 de abril de 2024

As novas minas no cinema

No final do maravilhoso curso do Paulo Henrique Fernandes Silveira na FEUSP, escrevi sobre a imagem das mulheres no cinema, passando de enfeites e coadjuvantes, durante muito tempo, a protagonistas das narrativas nos últimos anos. Parece que agora demos mais um passo nas películas, no sentido de as protagonistas soltarem o verbo contra o machismo. 
Só para ficar no exemplo dos filmes oscarizados deste ano, trago Barbie, Pobres criaturas e (eu acrescento) Anatomia de uma queda. Não fui a única a perceber essa relação, claro, especialmente entre os dois primeiros, puro deboche antimachista, e houve quem relacionasse o terceiro ao ótimo História de um casamento, como se a esposa do filme francês, vivida por Sandra Hüller, tivesse tido a coragem de dar as respostas que a personagem de Scarlett Johansson não conseguiu ao vomitório de insatisfações do marido. Eu colocaria os três indicados deste ano na mesma chave de leitura, com protagonistas que vivem sua vida sem se render à cartilha do patriarcado e, com isso, provocam espasmos e histeria dos machos de plantão - Mark Ruffalo chega mesmo a rolar no chão diante da liberdade plena da Bella Baxter de Emma Stone. 
Em outra postagem, comentei sobre Barbie em relação a outros filmes que traziam símbolos da infância, Indiana Jones e Asterix. Não tinha, contudo, enfatizado o discurso feminista, o ótimo texto, a fala exemplar da personagem de América Ferrera sobre tudo o que é exigido de uma mulher, nada menos que a perfeição e mais, se possível for. 
Com humor ou com tragédia, os três filmes trazem as mulheres questionando o patriarcado, arregaçando as mangas contra ele e provocando reações masculinas contrárias, dentro e fora dos filmes. Mas o que mais me agrada é que nenhuma das protagonistas se culpa por fazê-lo, algo que muitas de nós ainda precisam aprender. 

A perfeição e a poesia de "Dias perfeitos"

Fazia muito tempo que eu não via um filme de Wim Wenders, até porque ele realmente deu uma sumida do cinema ficcional. Estava mais na vibe dos documentários, como o ótimo Sal da terra, sobre a obra de Sebastião Salgado, e mais uma meia dúzia sobre diversos temas ligados a cultura. Mas em mim ficou para sempre a impressão deixada por Asas do desejo e Tão longe, tão perto
Então, de repente, me aparece esse Dias perfeitos, feito no Japão, em Tóquio, para ser mais exata. Em alguns momentos, me lembrou Murakami, mas é Wim Wenders mesmo, pura poesia na luz, nos silêncios e na trilha sonora em fitas cassete. O protagonista, o Sr. Hirayama, trabalha limpando banheiros públicos em Tóquio. Há uma repetição da rotina do personagem ao longo do filme, mas as pequenas variações, encontros, modos de olhar, são profundas mesmo sem provocar grandes efeitos dramáticos na narrativa. Hirayama, vivido pelo excelente Koji Yakusho, quase não fala, ou fala somente o necessário, mas ele observa tudo, experimenta a vida por meio da sua observação silenciosa.  
Claro que é um encantamento à parte conhecer, junto com ele, a vida cotidiana em Tóquio, e como a tecnologia nipônica está nos banheiros públicos, muitos deles enriquecidos com elementos de design. Mas há uma beleza igualmente nipônica na maneira como Hirayama realiza suas tarefas, nos lembrando que não há trabalho mais importante que outro e que limpar um banheiro é tão fundamental quanto o trabalho de um banqueiro. Aliás, logo percebemos que limpar banheiros é uma opção de Hirayama, mas por que ele optou por isso? Há uma sugestão de qual seja a razão quando aparecem na história a sobrinha e a irmã do protagonista. 
Outro dia, li um comentário do Ivan Martins sobre o filme, alertando para a aparente perfeição da vida de Hirayama que esconde o medo da vida em si. É muito provável, é algo que muitos de nós fazemos, tentar ter controle do cotidiano para não vermos o trem descarrilar, provavelmente porque já o vimos antes. Até onde conseguimos ir nesse controle? Hirayama, que enxerga o sublime no ordinário, vê sua paz ameaçada com a irmã, a sobrinha, o colega folgado, o suposto pretendente de seu interesse amoroso, a dona do restaurante (que interpreta lindamente, em japonês, "House of the rising sun", da banda The Animals). E tudo sucede no filme como sucede conosco, uma sequência de acontecimentos diários que são tirados do eixo pelo outro, que é inferno e paraíso, paraíso e inferno. A única certeza é que não conseguimos nunca ser os mesmos, depois do descarrilamento, dessas "falhas na Matrix", para mencionar outra película, ainda que os dias pareçam perfeitamente iguais.   

Uma possível conversa entre "O avesso da pele" e "Ficção americana"?

Comprei O avessso da pele, de Jeferson Tenório, pouco antes de me mudar para Salvador, junto com dois outros livros. Meu exemplar ainda estava no shrink quando surgiu a polêmica no Sul (sempre o Sul) de que o livro não deveria ser adotado nos colégios do Paraná. Vi que estava mais do que na hora de começar a leitura. 
E que leitura! Desde a primeira linha somos levados ao mundo das lembranças do narrador, que ora conversa com o pai que acabou de morrer, ora conta sobre a infância e juventude da mãe e como ela e o pai se conheceram. Permeando essas relações e realidades, o racismo diário, que cada uma das personagens compreende de uma forma, algumas vezes se surpreendendo com o motivo de serem (des)tratados de dada maneira. A violência policial é quase uma personagem à parte, absolutamente verossímil e palpável. Tenório constrói a narrativa alternando as experiências do narrador e seus pais de forma fluida mas - como poderia dizer? - pedregosa. Porque são muitos os percalços atravessados por essas pessoas entre vida e morte. 
Calhou de eu assistir na sequência ao filme Ficção americana, com o ótimo Jeffrey Wright. Este ano vi quase tudo que estava concorrendo ao Oscar, mas porque os filmes estavam muito diversos e interessantes. Pois Ficção americana tem uma premissa atraente, que é a de um escritor com bloqueio criativo que resolve criar uma persona do "gueto" para escrever um livro que caia nas graças de editores em busca de algo "exótico". O autor, que é negro, precisa ir em busca da cultura negra que ele não vivencia. Há várias críticas implícitas na história, mas me pareceu às vezes caricato demais - ainda mais no país que tem como símbolo da luta antirracista o assassinato de George Floyd, impedido de respirar e de viver por policiais. Pensei que teria sido ótimo se o diretor e o roteirista tivessem lido o livro de Jeferson Tenório para uma vivência mais real da experiência de uma família negra, mesmo de classe média. Talvez o filme perdesse algo do humor que tenta imprimir, mas ganharia demais em profundidade.

Chocotorta argentina

Já é difícil emagrecer na perimenopausa, mas com hóspede que adora um doce fica praticamente impossível. Mas decidi que essa chocotorta argentina será o último doce que farei enquanto Vivi estiver aqui. 
Creamcheese e doce de leite na mesma proporção, biscoito de chocolate levemente embebido no café. É isso. Um pouco doce além da conta, mas bom. 

Povo de livros

Alguns estudiosos dos livros sagrados se referem às três principais religiões monoteístas como "povos do Livro", neste caso a Bíblia, referência central do judaísmo (o Velho Testamento), do cristianismo (principalmente o Novo Testamento) e do islamismo (da leitura feita por Maomé, o Alcorão). Séculos depois, Guttemberg revolucionaria a leitura não só dos livros sagrados, mas de todos os livros, ampliando seu alcance em toda parte. O que não quer dizer que tudo passou a ser lido, pois, antes de tudo, é preciso haver leitores, quem domine as ferramentas do ler.
É triste que hoje, ainda, haja tanta gente que não possa ter o privilégio da leitura - por conseguinte, de imaginar mundos, de ter pensamento crítico, de conseguir defender suas ideias, de fazer a revolução. Ainda é privilégio mesmo, no sentido daquilo que poucos alcançam, uma lástima. Quantos Fabianos ainda há no mundo!
Sempre me maravilho com saber ler, sortuda que sou. Outro dia falei do maravilhamento com saber andar de bicicleta, mas ler é algo, para mim, que suplanta toda maravilha. Já falei disso aqui, mas eu mesma preciso às vezes lembrar que sou parte do povo de livros, assim, no plural, porque são muitos os nossos textos sagrados. Na última semana, foi Dia Internacional do Livro, mesmo dia de São Jorge, senhor das demandas, que nos reveste com suas armas e cores e palavras. 
Então esta semana também fui, pela primeira vez, à Bienal do Livro Bahia, no Centro de Convenções de Salvador. Fazia anos que eu não ia a uma bienal; agora é principalmente o espaço de encontro de jovens e crianças com autores, o que é perfeito. Não rolou fazer networking, o forte é a venda de livros já faz tempo. Mas tudo bem, comprei livros, paquerei outros tantos, atentei para as novidades, inclusive para as editoras que não conhecia, como Malê e Paralelo 13S. Também participei de um evento na Caixa Cultural, num dia com Itamar Vieira Jr. e Luciany Aparecida (que começou na Paralelo 13S), e ainda ganhei livro do mediador, Patrick Torres; no outro dia, com a jovem Roberta Gurriti e o simpaticíssimo Stefano Volp, cujo livro eu havia comprado na véspera, às cegas. Aprendi um tanto com os mais jovens, sobre tecnologias para lançar conteúdos, e com os mais velhos sobre o que é ser um autor negro e nordestino e quanto há ainda a conquistar - enquanto, nós, brancos ou quase, temos a percepção de que há "tantos" autores negros no mercado hoje em dia (isso rende outro post). Pelo menos em Salvador, a literatura feita por pessoas negras e tratando de personagens negras tem tido destaque - me saltou aos olhos o livro que mostra Machado de Assis menino negro, um avanço na forma de contar a história do gênio-bruxo do Cosme Velho. 
Amo ver as crianças e jovens encantados com os livros, com as possibilidades infinitas que eles trazem. E registrei o encontro de uma garota com o professor, provavelmente de Português - o entusiasmo dela ao correr para falar com ele, certamente para compartilhar a alegria de estar ali também. É impressionante a magia da leitura, em todas as fases de nossa vida, como ela nos faz lembrar que somos seres em transformação, em constante recomeço como nas palavras de Cora Coralina no marcador de página com que Guga me presenteou. Leia, plante uma roseira, faça doces. E recomece, sempre. 

Um salve a Jorge e a todos os guerreiros (sempre) de plantão

Porque a luta é diária.


domingo, 14 de abril de 2024

E la nave va

Os últimos trinta dias trouxeram um abalo mais forte, como o tremor que sacode de leve o prédio com a demolição de três casas da rua, uma triste promessa que enfim se cumpriu. Embora o barulho não seja enorme, eu e os vizinhos temos sentido a vibração da escavadeira enchendo de entulho os dez caminhões perfilados na nossa rua, antes tão sossegada. 
Também teve o abalo do já esperado mas sempre surpreendente aviso da minha demissão. Foram dez anos de parceria, mas todo fim é melancólico, não é mesmo? Meu segundo melancólico fim em menos de um ano, haja resiliência. E esse fim com mais impactos econômicos que o primeiro também me leva a logo me despedir deste apê que ora treme. 
Mas quase tudo foi bom nos últimos trinta dias. Comecei a tão desejada dança contemporânea na tradicional Escola de Dança da Funceb, que tem até gato residente, além de ficar no amado Pelô. Por fim, conheci o novo MAC, casarão lindo na Graça com acervo contemporâneo de arte e que estava recebendo o BazaRozê no dia. Já de olho em planos para futuro próximo, fui fazer um curso de projetos culturais no MUNCAB, com o ótimo Aléxis Góis. Almocei com Vivi no Boteco do Piri, que serve comida deliciosa e sofisticada em sua simplicidade - coxinha de polvo e feijoada de frutos do mar foram nossas pedidas mais do que acertadas, com direito a abraço do Piri no final. No mesmo dia, fomos ver a maravilhosa Luana Xavier arrancar lágrimas e risos com a adaptação feita por Aldri Anunciação para o teatro do Pequeno manual antirracista, uma emoção-aprendizado que ainda vibra (por falar em abalos) dentro de mim.
Achei uma máquina de waffle no precinho, quase realizando meu sonho de morar numa padaria. Fui ao show de Arismar do Espírito Santo, Robertinho Silva e Carlos Malta na Caixa Cultural, e experimentei uma emoção que há tempos não vivia, num show de música instrumental, de estar no lugar certo na hora certa, vendo aqueles monstros da música se divertindo como meninos. 
Em função da minha demissão próxima, ganhei de meu irmão Hideki um livro para iluminar as ideias, o de meu amigo Natale em parceria com Cristiane Olivieri, Guia Brasileiro de Produção Cultural. Voltei a fazer pão casca dura, sem sova, que ficou ótimo, o que já me deixa feliz da vida. Enfim fui experimentar o arroz de hauçá, no restaurante Axego, saindo da aula de dança, em companhia de Liu, Igor e Sueli - que delícia de prato! Depois de um cafezinho no Marrom Marfim, ainda demos uma espiada na batalha de dança no Largo Tereza Batista, testemunhando o arraso dos dançarinos de vogue. 
Recebi Vivi em casa até que ela consiga outro apê, depois de problemas com a proprietária do que ela havia alugado. Penso que é uma oportunidade de eu devolver ao Universo toda a ajuda que já recebi por aí, e continuo recebendo. 
E senti minha ancestralidade aflorar mais um pouquinho assistindo à maravilhosa série Xógum, no Star+. Agora quero aprender japonês, entre tantas ideias que tenho alimentado e que mantêm minha nau em curso.

Cabeceira

  • "Arte moderna", de Giulio Carlo Argan
  • "Geografia da fome", de Josué de Castro
  • "A metamorfose", de Franz Kafka
  • "Cem anos de solidão", de Gabriel García Márquez
  • "Orfeu extático na metrópole", de Nicolau Sevcenko
  • "Fica comigo esta noite", de Inês Pedrosa
  • "Felicidade clandestina", de Clarice Lispector
  • "O estrangeiro", de Albert Camus
  • "Campo geral", de João Guimarães Rosa
  • "Por quem os sinos dobram", de Ernest Hemingway
  • "Sagarana", de João Guimarães Rosa
  • "A paixão segundo G.H.", de Clarice Lispector
  • "A outra volta do parafuso", de Henry James
  • "O processo", de Franz Kafka
  • "Esperando Godot", de Samuel Beckett
  • "A sagração da primavera", de Alejo Carpentier
  • "Amphytrion", de Ignácio Padilla

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