Daí que levei uns desenhos recentes pra terapia, inclusive aquarelas.
Meu terapeuta perguntou o que eu via em comum nas imagens, mitológicas ou não, de mulheres que retratei.
Aquelas coisas de terapia, a gente nunca sabe o que responder de pronto. Falei dos cabelos, das mãos dadivosas das duas aquarelas, das mãos que jogam tudo para cima da cabeluda da quarentena. E acabei me lembrando da imagem maravilhosa, uma escultura, na verdade, da Medusa que está numa rua em Nova York e que acabou ganhando fama após as manifestações do MeToo. O artista Luciano Garbati criou em 2008 uma nova e libertadora versão do mito, em que ela aparece com uma espada em uma das mãos e na outra segura a cabeça de Perseu. Ela, que, estuprada por Poseidon no templo de Atena, é punida pela deusa por ter profanado seu espaço tornando-se um monstro que transformava quem a contemplasse em pedra. Mais uma invejinha de deus grego, claro, porque Medusa era uma jovem linda e virgem (isso me lembra a história de Aracne e sua treta com a mesma Atena, que a transformou em aranha, para "tecer eternamente", o que soa mais a castigo que dádiva). Falei dela, dos seus cabelos-serpentes que sempre me fascinaram, e do espelho, única forma de olhar para ela sem virar pedra. Espelho que também se encontra na imagem da sereia Iansã-Oxum que ainda não transformei em aquarela.
Meu terapeuta chamou a atenção para o espelho da sereia, o canto da sereia voltado para si mesma, o que, certamente, faz sentido quando a gente está no meio do processo de individuação - são tantas as armadilhas! Mas eu pensei principalmente, em meio a tudo em que tenho pensado sobre feminino e feminismo, das minhas leituras de mundo e para o TCC, em como o que define Medusa e a sereia como monstros é justamente o que simboliza sua feminilidade, no caso, os cabelos e o sexo. Os cabelos viram serpentes e o sexo torna-se o frio corpo de um peixe. As mulheres-monstros me fizeram pensar na conveniência dessa mutação nos casos de abuso e violência sexual. Por exemplo, do já referido caso de Robinho contra a moça albanesa, uma "maria-chuteira", interesseira, alpinista social; do caso grotesco do julgamento de Mari Ferrer, que se viu transformada em ré e seu estuprador, em inocente que praticou estupro sem intenção.
E por fim me vi diante do assassinato de Ângela Diniz, revivido no
excelente podcast Praia dos Ossos, criado por Branca Vianna e produzido por Flora Thomson-DeVeaux: uma mulher livre transformada em monstro antes de ser abatida com toda justiça por seu amante, ofendido por sua liberdade, sendo ele transformado em vítima no julgamento 3 anos após o crime. Ângela Diniz morreu com um tiro na nuca e três no rosto, símbolo de sua beleza ameaçadora. Quatro tiros na cabeça da Medusa para evitar que o heroico Doca Street fosse transformado em pedra, que perdesse sua força e masculinidade, seu lugar no mundo.
A sereia já nasceu mitologicamente monstro, a Medusa foi transformada em um. Ocorre-me que a transformação da Medusa e das mulheres em monstros e bruxas é uma estratégia de eliminação. Na verdade, cheguei à mulher-monstro Ângela Diniz porque assisti a um remake de Rebecca na Netflix, com Lily James no papel de segunda esposa do viúvo de Rebecca. Não vi o filme de Hitchcock, mas li o livro de Daphne du Maurier há muitos anos. Eu realmente não me lembrava de ter sentido o incômodo de ver uma mulher livre sendo julgada por outra mulher. Tudo bem, Rebecca é construída como uma libertina, que desrespeita e humilha o marido conservador, tudo isso para nos fazer ficar ao lado dele e da nova esposa, que move mundos para provar que a finada era cruel e dissimulada, uma Capitu com culpa reconhecida no cartório. Assisti até o fim só para ficar com um ranço enorme dos mocinhos, o marido assassino "pela honra" e a nova esposa capacho. A história de Ângela só difere do fato de não haver outra mulher para ajudar a sujar seu nome.
A ficção recria a realidade, a realidade recria a ficção - em versões mais "leves", a mulher livre é "só" uma megera a ser domada, como a que Shakespeare eternizou no século XVI. Nas artes plásticas, o heroico Perseu é representado sempre plácido, no controle da situação, quando ergue e exibe a cabeça do monstro, seja na escultura de Canova ou no bronze de Cellini. A Medusa, histérica, segundo Caravaggio, como todo monstro, histérica como uma mulher, aquela que ela foi. Há quem defenda a leitura dos mitos de forma clássica, sem levar em conta características humanas como machismo, egoísmo, vingança. Mas é preciso levar em conta que os mitos têm humanos por trás de sua construção e, portanto, um forte viés histórico, que mostra a sociedade como era - machista, misógina, violenta. Gosto sobretudo dessa mudança de representação na escultura de Garbati: para além da inversão de papéis, a do semblante da Medusa, heroína de si mesma e de todas, semblante daquelas e daqueles que combatem a injustiça.