Somos privilegiados, sabemos disso. Podemos trabalhar em casa, e já fazemos isso há tempos. Moramos longe de um grande centro urbano, não precisamos tomar ônibus ou metrô lotado.
Quando se anunciou a necessidade de isolamento social, fomos ao supermercado, compramos só o necessário para uma quinzena. As pessoas ainda não estavam em pânico. Não achamos álcool 70%, mas logo ganhamos um frasco de 1 L do tio de Guga e mais um frasquinho em gel da minha professora de pilates. Foram interrompidas as aulas no estúdio e na academia, minha sogra foi dispensada do trabalho para ficar em casa. Liguei para minha mãe, para lembrá-la de não sair por aí.
Parece o melhor dos mundos, fazer home office nessa situação de calamidade. Mas não é tão fácil relaxar diante da possibilidade de desemprego, de hecatombe na saúde coletiva e na economia nacional. Eu, naturalmente distraída, não consigo quase focar em trabalho e estudo, nem aproveitar para organizar coisas, ou ler, ou bordar. Fico meio no limbo. O negócio é, segundo o Christian Dunker, mudar essa chave, seguir uma rotina, mesmo diferente da que existia. Não sabemos até onde isso vai - eu havia, inocentemente, até comprado ingressos para ver Chico César e Geraldo Azevedo, mas pelo jeito, né. Hoje saí para caminhar por perto, evitando a proximidade das pessoas (e ainda havia gente bebendo nos botecos), porém já estou repensando.
Claro que nem vou me comparar à situação de milhões de brasileiros que não têm como se proteger, ou porque têm que continuar saindo de casa para trabalhar, ou porque não têm casa, ou porque não têm água encanada nem dinheiro para comprar sabão nem comida na mesa. Sim, continuamos sendo privilegiados, mesmo que a bad venha bater à porta pela súbita insegurança, pelo encarceramento necessário.
Ontem fomos a um outro supermercado próximo, só para comprar uns itens de limpeza que não encontramos. Ali a coisa já estava mais tensa, com a galera passando com carrinhos lotados de papel higiênico (um mistério essa estocagem de PH!) e caixas e caixas de leite longa vida. Quando chegamos, já fui colocando nossas roupas na máquina de lavar, por via das dúvidas.
Precisamos fazer força para não deixar a coisa desandar, os quilos voltarem, a saúde ir pro saco, a mente idem. E na hora em que isso parecer muito difícil lembrar do outro normalmente fodido, diariamente. Muita gente romantiza a crise, chamando a atenção para o fato de que ela "nos iguala". Podemos, e devemos, sair empobrecidos dessa, mas a desigualdade seguirá esmagando ainda mais os mais pobres, a menos que haja uma mudança radical de pensamento, de diretriz político-econômica, de sociedade mesmo. Porque esta que aí está chegou ao fim.