terça-feira, 30 de julho de 2024

"Macacos", de Clayton Nascimento

Foram três horas de porrada. Inclemente, incansável, ininterrupta. Necessária.
Clayton Nascimento tem apresentado seu monólogo Macacos desde 2016. Eu descobri Clayton numa novela global ao mesmo tempo que soube de sua peça - imediatamente, pensei que precisava vê-lo no palco. Achava que ele já tivesse vindo a Salvador, quando eu não havia ainda chegado aqui, e torcia para que "voltasse". 
Como acredito demais nos milagres cotidianos, estava com a cabeça a mil, angustiada com questões práticas, quando a arte veio em meu socorro: o superagitador Aldri Anunciação lançou sua sexta edição do Festival Melanina Acentuada e trouxe, entre outras maravilhas, a peça Macacos a Salvador. Quando entrei no site para a compra, os ingressos já estavam esgotados. Alguns dias depois, vi novo anúncio da peça e resolvi tentar de novo. E consegui! E era a primeira vez da peça na Bahia, em Salvador, o que Clayton enfatizou várias vezes.
O espetáculo aconteceu no Goethe, mesmo lugar do Pequeno manual antirracista, adaptado por Aldri e interpretado por Luana Xavier. Igualmente impactante, com a mesma questão terrível e persistente do racismo, também monólogo. Mas a arte é esse deslumbramento sempre, com cada artista derramando sua alma e força diante do público de forma única. Clayton fala, dança, gesticula, grita, incorpora, anda, corre por três horas. Em nenhum momento se repete (só quando é necessário "fechar" um assunto). A peça é desabafo, aula, biografia e denúncia, tudo ao mesmo tempo. Houve um momento em que achei que ela ia desandar, mas não, ele amarra tudo com a coerência de quem vive tudo na pele. Ao final, a emocionante presença de Terezinha, mãe de Eduardo, 9 anos, assassinado pela PM do Rio em 2015, que inspirou Clayton a criar o monólogo.
Eles foram aplaudidos de pé por intermináveis e merecidos minutos. A gente se sente miserável de viver num país, num mundo em que tantos Eduardos morrem diariamente pela cor de sua pele. Mas a gente se fortalece por estar ali, junto com Clayton, Terezinha, Aldri, acolhendo a dor, dando as mãos, se energizando para gritar também por justiça.

terça-feira, 23 de julho de 2024

Salvador é pura música

Salvador tem de tudo. Tem rock, tem música afro em todas as suas nuances (axé, samba, ponto de orixá, maracatu), tem sinfônica, tem jazz, tem banquinho e violão. Tem até Cidade da Música (que ainda vou visitar)! Aqui Orfeu estaria sempre no Paraíso.

sexta-feira, 19 de julho de 2024

OSBA na Concha

Fui assistir ao ensaio aberto da OSBA, a sinfônica da Bahia, regida por Carlos Prazeres. Hoje, a regência foi do maestro convidado Éder Paolozi. As peças ensaiadas foram de Dmitri Shostakovich e J. Sibelius. 
Os ensaios abertos são divulgados com antecedência e quem quer assistir preenche um formulário e aguarda a resposta em alguns dias. Nos espetáculos mais concorridos é mais difícil conseguir. Hoje não havia meia dúzia de pessoas na Concha Acústica, mas foi igualmente lindo ouvir a OSBA tocar. Fiquei emocionada de estar ali, com o privilégio de ouvir aquela música, aquele caos organizado nas afinações, de ver aquele céu esplendorosamente azul.
O único senão foi um sujeito que estava assistindo a algum vídeo, em volume altíssimo, na arquibancada. Alguns músicos viraram para olhar, mas não podiam fazer nada. Fui até ele e disse que estava atrapalhando. Qual não foi minha surpresa ao depois vê-lo integrar a linha dos metais! Um tocador de trompete completamente sem noção, viciado em redes sociais na hora do ensaio? Temos.

quinta-feira, 18 de julho de 2024

Alice Munro, Virginia Woolf e Mary Oliver

Há uns quatro anos topei com As luas de Júpiter na Livraria Cultura. Gostei do título, não conhecia nada da canadense Alice Munro (que nos deixou este ano), embora o nome não me soasse estranho. Mas foi só há dois anos que fui atrás do título pelo Kindle. Comecei a ler muito tempo depois, e parei. Retomei o ano passado, achando, por algum motivo, que tinha relação com a inglesa Virginia Woolf, cujo Um teto todo seu eu tinha acabado de ler.
Talvez a única relação com Woolf tenha sido a de um conto, "Dulse", tratar justamente de uma editora, uma quase poeta. Aliás, conto dolorido em vários aspectos - a mulher desajeitada de si mesma, querendo caber no universo de um homem que ela nem sabe se é essa cocada toda etc. Talvez esse malajambramento é que tenha me remetido a Woolf, que defende em Um teto todo seu que a mulher tenha autonomia, que tenha direito a um espaço tranquilo para desenvolver seus talentos, sem ficar presa à rotina de cuidados imposta pelo patriarcado. Virginia, tão à frente do seu tempo, vista apenas como louca por muita gente - aliás, fui ver a montagem de Claudia Abreu com texto escrito pela atriz; talvez, para quem não sabe muito de Virginia Woolf, tenha ficado só a impressão de que foi uma escritora suicida, que não batia bem dos pinos. 
Na forma muito diferente de Woolf e Munro, a poesia da norte-americana Mary Oliver também me chegou outro dia, já não sei por que vias. Oliver se inspira muito na natureza, nos ciclos naturais, num certo apaziguamento diante da vida quando integrada à natureza. Mas vejo-a em perfeito diálogo com as outras duas, talvez aconselhando-as em suas aflições, apoiando-as em suas decisões. Dizendo a Woolf que tudo vai ficar bem, ajudando a personagem de Munro a se reconectar consigo. Como no poema "The Journey", que me atrevi a traduzir e que veio até mim na forma de um clarão (como a maioria das coisas que importam):

Um dia, você enfim soube

o que tinha que fazer, e começou

embora as vozes ao seu redor

continuassem gritando

seus maus conselhos

embora a casa toda

começasse a tremer

e você sentisse

o velho puxão nos seus tornozelos.

“Conserte minha vida!”,

cada voz gritava.

Mas você não se deteve.

Você sabia o que tinha que fazer,

Embora o vento se infiltrasse

Com seus dedos rígidos

Até as mínimas fundações

Embora a melancolia delas

Fosse terrível.

Era já bastante tarde, e a noite selvagem,

E a estrada repleta de galhos caídos e pedras.

Mas, pouco a pouco,

À medida que você deixava as vozes para trás,

As estrelas começaram a queimar

Através das camadas de nuvens,

E havia uma nova voz

Que você lentamente

Reconheceu como sua,

Que ficou em sua companhia

Enquanto você caminhava

Mais e mais profundamente

No interior do mundo

Determinada a fazer

A única coisa que você poderia fazer.

Determinada a salvar

A única vida que você poderia salvar.

Bolinho e bololô

Sim, após muitos anos, por fim comemorando no dia 17.
Quando eu era adolescente, tinha um certo trauma de aniversário, porque caía nas férias, e achava que ninguém ia comparecer. Tinha receio de convidar e levar toco, além de a casa ser pequena para receber mais de meia dúzia de pessoas (embora, como disse, acreditasse que não viriam todos que convidasse). Muito diferente de quando eu era pequena, e sempre tinha festa com bolão feito por minha tia Cida, cozinheira de mão cheia.
Somente quando comecei a trabalhar tive a brilhante ideia de comemorar meu aniversário fora, com amigas e amigos. Virou uma tradição ir à Speranza todo ano, encomendar bolo no Benjamin. No meu próprio canto, também ficou mais fácil reunir a galera, e cada vez mais fui sacando o valor do petit comité. Já fiz aniversário em danceteria, uma vez, mas prefiro mil vezes o karaokê só com os íntimos. 
Este ano, foi modesto, mas rico, com bolinho e bololô de queridos. Errei a conta dos salgados, encomendei pra um batalhão, porque essa galera vale por muitos mesmo, e ainda fiz pão delícia, boliviano, brigadeiro e toalha felpuda, só para lembrar o bolo de festa que nunca teve no meu aniversário, mas que eu vi muito por aí (uma memória afetiva apropriada, digamos assim).
De novo, muito bom. Comemorar é muito bom, especialmente quando não se sabe do futuro - é uma espécie de dança da chuva, chamamento de dias melhores, que virão, ah, virão sim. Tim tim.

segunda-feira, 15 de julho de 2024

Pré-aniversário com feijoada, karaokê e desfile de perucas

Foram tantos anos comemorando o aniversário juntos, mesmo que quase nunca no dia 17 (porque juntávamos o meu, de Carol e de dona Amélia), que este ano mantivemos a tradição. Ganhei uma feijoada delícia de pré-aniversário, com direito à família toda reunida, só faltando enteado. Amor é isso, né? Mesmo quando o casamento acaba.
Ainda rolou karaokê, com microfone sofisticadíssimo que Nana trouxe e um desfile de perucas que arrumei para incrementar as performances. Foi bom demais! Até me deu ânimo de encarar a passagem dos 52 que vêm por aí (e logo tem mais festa, que sou uma drama queen que adora festejar).

sábado, 6 de julho de 2024

A delicadeza afrontada em "Close"

Desde que soube da existência de outro filme de Lucas Dhont, o mesmo diretor de Girl, fiquei de olho em que streaming ele apareceria. Demorou, mas em maio Close estreou no Netflix. Embora os dois filmes sejam bem diferentes, há em ambos a dor de quem quer ser apenas quem é mas encontra a intolerância e o preconceito pela frente, nos dois casos, chocantemente, em outros jovens que estão apenas começando a viver. 
Close mostra a amizade entre dois garotos de 13 anos numa cidade bucólica da Bélgica. A questão não é saber se se trata de uma relação amorosa; o que se vê é uma inocência patente na maneira como os amigos se tratam um ao outro. Até poderia se tornar uma história de amor, mas não saberemos jamais, tudo porque a violência da intolerância nascente vai abreviar essa história. A possibilidade de vida e amor é minada pelo ódio herdado de uma cultura machista. O título se refere, de antemão, a um comentário que uma colega faz acerca da relação de Leo e Remi, de que eles estavam sempre "perto", sempre juntos, se isso queria dizer que eles tinham um "relacionamento". Leo fica incomodado, pela primeira vez - nunca havia pensado nisso. Remi, uma alma de artista, nem parece se aperceber do comentário maldoso, mas sofre horrivelmente com o afastamento do amigo. 
Mais uma vez, Lucas Dhont dirige de forma magistral seus atores, a ponto de nos partir o coração. Mais uma vez, a suavidade das personagens é engolfada pela tragédia. Mas isso não é motivo para não assistirmos ao filme, pelo contrário - é a oportunidade que a arte nos dá de enxergarmos o outro, de lhe emprestarmos a nossa pele e nos deixarmos afetar, sinal indiscutível de que estamos vivos.
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sexta-feira, 5 de julho de 2024

Junho

Junho é um mês querido, que lembra calor humano no meio de temperaturas mais baixas. Mês dos santos Antonio, João e Pedro, me lembra a infância com quadrilhas e quermesses em escola e igreja. Em São Paulo, as festas juninas não têm a escala das do Nordeste, que, aliás, ainda não conferi, como em Caruaru ou mesmo no interior da Bahia. Mas fica o aconchego nas ruas, aonde quer que se vá, com pessoas se desejando um "feliz São João", quase como se fosse Natal. 
Marisa me mandou um texto maravilhoso do sempre precisamente poético Luiz Antonio Simas, sobre a transformação de um homem implacável, João Batista, primo de Jesus, em um santo menino, de cachinhos e acompanhado de um carneirinho, justamente a imagem que festejamos em junho, no dia 24, na segunda festa mais importante da Bahia depois do Carnaval. Um verdadeiro milagre popular essa transmutação da raiva em amor. 
Junho também é mês de aniversário de Chico Buarque, que este ano completou 80 primaveras musicais. Nem escrevi nada a respeito porque li tanta coisa bonita em toda parte, toda gente do bem se lembrando de trechos da obra do gatão de olhos verdes, olhos de ardósia, nas palavras de Jobim! Me deu uma alegria imensa, tanto a homenagem enorme ao homem e artista Chico, quanto me lembrar junto com todas essas pessoas das músicas maravilhosas de Chico artista e homem, homônimo de outro santo que me fala ao coração, e do Opará querido, e do meu gatito irmão de Zen, sempre no coração.
Em junho, só passei de raspão por um forró no Santo Antonio, mas foi o suficiente para aquecer a alma, tão precisada desse calor.

Cabeceira

  • "Arte moderna", de Giulio Carlo Argan
  • "Geografia da fome", de Josué de Castro
  • "A metamorfose", de Franz Kafka
  • "Cem anos de solidão", de Gabriel García Márquez
  • "Orfeu extático na metrópole", de Nicolau Sevcenko
  • "Fica comigo esta noite", de Inês Pedrosa
  • "Felicidade clandestina", de Clarice Lispector
  • "O estrangeiro", de Albert Camus
  • "Campo geral", de João Guimarães Rosa
  • "Por quem os sinos dobram", de Ernest Hemingway
  • "Sagarana", de João Guimarães Rosa
  • "A paixão segundo G.H.", de Clarice Lispector
  • "A outra volta do parafuso", de Henry James
  • "O processo", de Franz Kafka
  • "Esperando Godot", de Samuel Beckett
  • "A sagração da primavera", de Alejo Carpentier
  • "Amphytrion", de Ignácio Padilla

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