Daí que um dos grandes assuntos nos últimos dias foi a fala infeliz de Lilia Schwarcz sobre o álbum visual de Beyoncé. Eu nem conheço muito o som de Beyoncé, só estou ciente da sua importância para a representatividade negra ao redor do mundo, do seu papel de diva pop que há tempos substituiu Madonna, do seu trabalho sempre esmerado em canções, clipes e shows. Mesmo assim, quando li a crítica de Schwarcz, achei-a descuidada e arrogante, ao sugerir que a forma como Beyoncé queria representar sua ancestralidade africana estava errada, que ela devia "deixar a sala de estar".
Ninguém deve negar a importância de Lilia Schwarcz para os estudos sobre escravidão e diáspora africana no Brasil e no mundo. É uma das mais importantes historiadoras contemporâneas sobre o assunto, inconteste. Mas daí percebemos no seu escrito o ranço branco e acadêmico de dizer ao "outro" como ele deve se comportar, como deve se sentir sobre seu lugar no mundo. Como estamos todos acostumados com os papéis dados a negros, mulheres, pobres, gays, causa espanto a reação às falas de quem sempre pôde falar com autoridade, diante do silêncio dos humilhados. Uma reação dos humilhados e também de muita gente que não quer mais coadunar com a injustiça - talvez uma coisa positiva da pandemia? E aí ocorre uma contrarreação, de brancos acadêmicos que se revoltam com os revoltosos - então os brancos não podem falar mais nada? Como assim, crucificar Lilia Schwarcz? Que atrevimento! E não é mesmo muito ruim esse "clipe" da Beyoncé, credo? E essa estampa de oncinha?
Então, depois de ler uma avalanche de críticas de todo lado, fui ver o álbum visual completo (não é só um "clipe", como muitos acadêmicos disseram), no link enviado por meu amigo Marcelo. E fiquei de cara. Quanta beleza, quanto glamour, quanto trabalho realizado com perfeição! Uma narrativa coesa, bem construída, elenco empoderadíssimo, um look mais lindo que o outro, Beyoncé oxunzando geral, conectada à natureza tão diversa da África, arrasando nas coreografias ou simplesmente reinando em seu trono pop. Fiquei apaixonada, querendo saber mais, de África e da obra de Beyoncé. Claro, a África não é só glamour, não é só consumo, não é só tribo. Mas é tão importante que haja uma mudança de paradigma trazida pela arte, que os negros construam sua visão de si, com todas suas nuances culturais, e não mais carreguem o peso de uma visão alienígena, cheia de preconceito.
Interessante pensar que somente por meio da indústria cultural, nesse episódio Bey x Lilia, o debate sobre o racismo sistêmico tenha alcançado a todas as esferas. Porque no Brasil ele acontece todo dia, toda hora. Na última semana, dois rapazes chamados Matheus foram vítimas de racismo: um deles motoboy, agredido por um sujeito também Mateus, num condomínio no interior de SP, o outro, covardemente encurralado por dois homens num shopping no Rio, quando havia ido trocar um relógio que comprara para o pai. Embora revoltantes, os episódios não chamaram tanto a atenção quanto a querela pop, e são tratados como fatos isolados no racista Brasil (mesmo com o ar de parábola que adquirem, com tantos Mateus reunidos).
O termo representatividade já tem sido contestado por alguns intelectuais, como algo que nega a individualidade. Talvez o mesmo que aconteça quando falamos em "nação", agrupando os desiguais e afastando assim o considerado outro povo. De qualquer modo, ainda acho que é o melhor termo para dar voz e rosto a um grupo, reconhecendo justamente sua especificidade e sua importância. Serve para que negros, mulheres, gays tenham voz e direitos e diferenças reconhecidos. Não para os pobres, que necessitam de uma revolução social que os tire justamente dessa condição, que não é identitária nem atávica como os poderosos querem fazer crer.
Somente depois de começar a pensar mais profundamente no racismo contra pessoas negras é que refleti sobre o preconceito sofrido por orientais. Nem ouso comparar, porque são graus muito diferentes. No entanto, cresci vendo o padrão branco como correto. Não havia bonecas japonesas - somente aquelas vendidas como souvenir na Liberdade ou trazidas do Japão por velhos parentes -, nada que se assemelhasse a nós. Durante minha infância, fomos poucos na escola. Somente no ensino médio descobri uma multidão de colegas iguais - e que discriminavam os outros, por sua vez. Até em termos de maquiagem, não havia nada muito específico para as peles amarelas. Quando fiz o curso de maquiagem com uma amiga da Bienal, ela descreveu minha pele como "esverdeada", que eu devia evitar usar verde, azul, vermelho. Fui descobrindo que tons assentavam melhor. Outro dia, li uma matéria sobre maquiagem para peles negras, como isso era importante para a representatividade das mulheres negras que não tinham um nude pra chamar de seu - e que uma marca nacional, Dailus, criou uma linha bem ampla de batons e esmaltes veganos cor de pele. Skin tones. Para todas. Me emocionei, também nunca tive.
Bom, fui atrás da Dailus. Comprei alguns batons, ainda não recebi. Mas achei um esmalte da marca na farmácia outro dia. Já amei. Já me sinto representada. Agora estou atrás de lápis de cor com diferentes tons da pele, para redesenhar o mundo enquanto a revolução não vem.