terça-feira, 11 de outubro de 2016

Natureza viva no Vale do Capão

Eu precisava muito, muito viajar. Nem que fosse só um final de semana, para algum lugar próximo. Vi uma brecha no meio da produção e propus ao marido. Primeiro falamos em Petrolina, depois ele sugeriu o Vale do Capão.
A aventura começou em pagar o licenciamento do carro em meio à greve dos bancários, depois levar o carrinho para uma revisão. Corri para enviar o que precisava do meu trabalho. Na manhã da viagem, Guga ainda duvidou: se só estivesse chovendo, era melhor não irmos.
Como ele sabe que detesto desmarcações (já tinha reservado o quarto na Tatu Feliz havia umas duas semanas), deixou a meu cargo decidir. Decidi que iríamos - só voltaríamos se fosse impossível chegar ao lugar por conta da chuva.
Já não é fácil chegar ao Capão. De Salvador, tomamos a BR 116 até Feira de Santana (o portal do sertão), dali a 324 para Itaberaba (o portal da Chapada) e então a 242 até Palmeiras. A vila do Capão fica no distrito de Caeté-Açu. São cerca de 6 horas de viagem, com trechos não duplicados de estrada e outros de terra. Ainda tivemos de passar em Salvador, para buscar o comprovante de pagamento do IPVA com a mãe de Guga.
Depois de Itaberaba, fomos cobertos por uma chuva monstruosa - tudo ficou instantaneamente branco na estrada cheia de curvas, subidas e descidas e caminhões (a BR 242 é o acesso para Barreiras, maior polo agropecuário do Oeste baiano). Perto de Lençóis, o tempo abriu. Chegando perto de Palmeiras, víamos as nuvens escuras em torno da serra. E raios caindo aqui e ali.
Chegamos ao Capão junto com a chuva. Saímos para comprar um guarda-chuva (no mercadinho Flamboyam) e explorar a vila. Quase tudo fechado - além da chuva, é baixa temporada. Mesmo assim, sentamos para tomar uma cerveja no boteco dos locais. Acabamos descobrindo um restaurantezinho, Mediterrâneo, supostamente de hispânicos, já que vendiam tapas e vinhos. Pedimos o ravióli recheado com ricota e espinafre, o meu com manteiga e sálvia, o de Guga al pesto. Embora o chefe carregue um pouco no sal, uma boa massa, a bom preço (23 reais). O lugar é fofo, com arquitetura original e cortinas de chita nas janelas da cozinha. Depois do jantar, voltamos à pousada para o merecido banho (o único senão foi o ralo do chuveiro entupido). O quarto é simples, mas espaçoso. Logo desabamos.
No outro dia, acordamos cedo para o café - bem bom, com ovos, pães, cuscuz, bolo, sucos, banana-da-terra e o ótimo café Lá do Sertão, da marca Terroá, que já conhecíamos. Nossas pretensões para o dia eram modestas, já que o céu estava nublado e logo começou a cair uma chuva fininha. Acabamos puxando papo com dois casais sentados ao nosso lado na mesa comunal.
Eles tinham feito a trilha da Cachoeira da Fumaça no dia anterior com um guia muito bom. Um dos casais - Lívia e Ígor - iria para a cachoeira das Águas Claras, se o tempo firmasse. Como o outro casal estava indo embora, propuseram que fôssemos fazer a tal trilha também. Topamos.
Era uma trilha no meio do Gerais, margeando o Morrão, uma caminhada total de 14 km cujo ponto alto era o banho nas Águas Claras. Achei relativamente fácil - embora a caminhada fosse longa, a trilha é quase toda plana, com quase nenhuma passagem difícil - apenas um curso d'água, estreito, no início. Ao final, a cachoeira com formações que lembram chuveiros, de água muito gelada. A vegetação é linda, com flores delicadas coroando caules robustos. Até colibri cantando vimos. Uma cobra-coral armou quando nos viu, na volta.
O guia Uilton é uma figura ímpar - imagino que Manuelzão fosse assim, contador de causos, cheio de sabedorias, observador silencioso, parte da natureza. Tinha mil histórias para contar ao mesmo tempo que nos dava total atenção para que fizéssemos uma boa caminhada.
Na volta, paramos para comprar o café do Terroá com o falante proprietário. Chegamos tarde à vila, cerca de 16h30, e já não havia muitas opções para almoçar. Fomos ao restaurante de dona Dalva, famosa pelo pastel de palmito de jaca. Pedimos PFs, que vinham com cortadinho de palma, arroz, feijão, salada, carne de sol. Estava bom. Dali, procuramos um café. Encontramos um lugar que vende um pouco de tudo, inclusive coletores menstruais (!). Café assim-assim.
Quisemos sair mais tarde, mas a chuva desabou, mais forte ainda que na noite anterior. Tomamos uma cervejinha apenas e voltamos. No outro dia, Lívia e Ígor tinham combinado com Uilton fazer uma outra trilha, com duas cachoeiras, a Angélica e a da Purificação, se não estivesse chovendo. Uilton tinha dito que era uma trilha de mata fechada e muita pedra, ao longo do rio, então não me animei muito. Mas vi que fazer a trilha da Fumaça também seria arriscado, pois a subida é íngreme e as pedras estariam mais escorregadias. De novo, nos juntamos a eles para a empreitada.
Antes da trilha, fomos ao mercado para comprar mel, própolis etc. Da feira local, trouxe cortadinho de palma, palmito de jaca e até shitake de uns visitantes de Sergipe.
Fomos então encontrar Uilton na frente da casa dele, nas proximidades do Bomba. Quando chegamos ao início da trilha, já havia um trecho de rio para atravessar. Achei que não ia conseguir (e acharia isso várias vezes no trajeto de 5 km no total). Uilton arrumou um cajado para ajudar. Fomos indo. Como o solado da minha bota tinha começado a soltar pela falta de uso, tinha ido de Crocs, pisando com muito cuidado para não escorregar. Se chovesse, teríamos que voltar porque não conseguiríamos passar o rio. Imagine a minha calma diante dessa possibilidade.
Foi uma trilha de pura superação para mim. Atravessamos a água umas seis vezes. Ia ficando cada vez mais alto, mais fechado e mais difícil. Fui respirando profundamente ao longo do caminho, me concentrando no que estava fazendo. Precipícios se desenhavam ao nosso lado, mas eu só olhava para a frente.
Por fim chegamos a um poço de pedra de outras eras. Água ultragelada. Não me banhei, lo siento. A volta, claro, pareceu muito mais rápida. Depois soube por Lis, gerente da pousada e mulher de Uilton, que "nunca a Purificação esteve tão cheia".
Já na vila, provamos o pastel de jaca de dona Dalva, mas almoçamos em Dona Deli, um PF melhor que o de dona Dalva (com abóbora cozida, uma delícia), apesar do mau-humor da moça que nos serviu. Mesma faixa de preço, cerca de 20 reais, com direito a ambrosia no final.
Saímos mais tarde para provar a tal Pizza do Capão. São só dois sabores, um doce e um salgado, servidos num espaço lindo, um grande quintal coberto com decoração rústica e de bom gosto. A pizza tem massa integral - a doce é de banana com queijo e castanhas, a salgada leva queijo, cenoura, tomate, azeitonas e uma indefectível cobertura opcional de mel com pimenta. O preço, ótimo (uma pizza grande, uma pequena, duas cervejas, um jarrinho de suco, tudo por 66 reais). Ainda ganhamos a rolha do vinho que levamos, porque disse que o aniversário de Guga tinha sido na outra semana. Atendimento simpático e rápido. Não à toa, um dos lugares mais famosos da vila.
Muitos lugares permaneceram fechados por conta da chuva e da baixa temporada. Nas ruas, muitos gringos hipongos, estudantes da UFBA. Os moradores na sua, sem tanta interação com os estrangeiros. Houve um momento bizarro em que passou uma picape tocando um som horrível e várias pessoas se penduravam no carro - era a comemoração do prefeito vencedor do município. Discrepante.
Somente no outro dia, nosso último dia, senti as pernas doloridas. Fabiane, que comanda a cozinha da pousada, nos serviu um café caprichado. Fomos ao mercadinho atrás de banana-passa, sabonete de sal grosso, unguento de arnica e própolis. Fim das compras de produtos locais.
Nos despedimos dos nossos ótimos companheiros de trilhas, animados com a possibilidade de nos encontrarmos para mais empreitadas. E ficamos mais motivados para entrar em forma e assim encarar outras viagens com maior tranquilidade.

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Cabeceira

  • "Arte moderna", de Giulio Carlo Argan
  • "Geografia da fome", de Josué de Castro
  • "A metamorfose", de Franz Kafka
  • "Cem anos de solidão", de Gabriel García Márquez
  • "Orfeu extático na metrópole", de Nicolau Sevcenko
  • "Fica comigo esta noite", de Inês Pedrosa
  • "Felicidade clandestina", de Clarice Lispector
  • "O estrangeiro", de Albert Camus
  • "Campo geral", de João Guimarães Rosa
  • "Por quem os sinos dobram", de Ernest Hemingway
  • "Sagarana", de João Guimarães Rosa
  • "A paixão segundo G.H.", de Clarice Lispector
  • "A outra volta do parafuso", de Henry James
  • "O processo", de Franz Kafka
  • "Esperando Godot", de Samuel Beckett
  • "A sagração da primavera", de Alejo Carpentier
  • "Amphytrion", de Ignácio Padilla

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