sábado, 29 de fevereiro de 2020

Alegoria e ironia para fazer ver - Corra! e Jojo Rabbit

Acabo de assistir a Jojo Rabbit, filme do neozelandês Taika Waititi (que, aliás, merecia o Oscar de melhor maquiagem por sua transmutação de bronzeado maori para o desbotado Adolf Hitler), baseado no romance Caging Skies, da também neozelandesa Christine Leunens (mais uma obra feminina adaptada ao cinema). Ri e chorei com a saga do pequeno membro da juventude nazista que se apaixona pela jovem judia escondida em sua casa e tem um amigo imaginário chamado Adolf e nenhuma destreza para a guerra. Um pouco de fábula e ironia pode ser mais eficiente que um chamado à razão para se enxergar o mundo louco e retrógrado em que temos vivido há tanto tempo, e que volta e meia se repete a si mesmo. Sobretudo se tiver uma paleta à la Wes Anderson nos ambientes internos para realçar a narrativa.
Sinto o mesmo que senti, guardadas as devidas proporções, quando assisti a Corra!, de Jordan Peele. O escancaramento do racismo de forma tão absurda parece ser a única maneira de mostrar a existência dele a quem se nega a enxergá-lo no dia a dia. É preciso beirar o ridículo, a alegoria, para que todos enxerguem.
Não se enganem, porém: o entretenimento é só um verniz desses filmes. A crítica histórica e social é muito mais pungente em histórias aparentemente despretensiosas ou com toques de fantasia, como vemos em outras obras cinematográficas - o expressionismo alemão, por exemplo - e também em obras literárias e teatrais - logo me vêm à mente Murilo Rubião, Kafka e García Márquez e as peças de Ionesco e Beckett. Isso para não falar das artes plásticas em diversos momentos.
Bendita arte, que nos salva diariamente de uma cegueira iminente.

domingo, 23 de fevereiro de 2020

Da importância de fazer diferente e às vezes fazer o mesmo

Mesmo reduzindo os carboidratos, especialmente açúcar, pães e massas, temos comido bem, na verdade melhor que antes. Agora esses itens entram de vez em quando no cardápio - e parecem muito mais gostosos, pelo menos para mim!
Como a base da alimentação diária tem sido proteína, salada e legumes, é fácil enjoar. Tem dias que enjoo só de olhar pro tomate, sério. Então só me resta variar de alguma forma o preparo, aquecendo o tomate, utilizando o pão italiano para uma panzanella, empanando o frango com parmesão, utilizando o pesto em diferentes pratos, como nhoque de batata-doce e macarrão de abobrinha, fazendo um chutney rápido de maçã para cobrir a carne suína e chips de batata-doce para acompanhar o estrogonofe. 
E às vezes só quero comer uma coisa de que gosto muito, como um pão de fermentação lenta ou um sorvete preparado por mim, com creme de avelã e creme de leite. Não precisa ser toda hora, não precisa ser todo dia, mas de vez em quando só precisa ser. 

"Parasita" e "Assunto de família" - cinema à margem

Merecidamente, Parasita, do diretor sul-coreano Bong Joon-ho, levou este ano o Oscar de melhor filme, além de ter vencido em outras categorias. A família que mora em um porão na periferia da grande cidade e faz planos mirabolantes para tirar vantagem da súbita proximidade de uma família rica nos conquista de cara e logo estamos torcendo por ela, para que ela consiga minimizar um pouco a desigualdade que a mantém nos porões da sociedade. Aliás, uma história como essa ganhar um Oscar é talvez mais incrível que um filme oriental levar a estatueta - é quase como se tivéssemos vencido com Central do Brasil, a injustiça histórica, ou Cidade de Deus.
Seguindo uma temática parecida, temos o menos dinâmico mas igualmente provocador Assunto de família, do japonês Hirokazu Koreeda, produzido pela Netflix. Uma outra família à margem da sociedade ultraconsumista sobrevive com pequenos golpes e furtos. Para mim, a novidade foi mostrar não um Japão de tradição milenar e com milhares de pessoas a caminho do trabalho na megalópole ultraeficiente e brilhante, e sim um país que não dá conta, ele também, de suas contradições capitalistas. Nada de pessoas cometendo seppuku/harakiri porque foram malsucedidas ou desonradas no trabalho ou no vestibular: o fracasso é naturalizado nas moradias tão parecidas com as favelas dos países subdesenvolvidos. Apesar de tudo, a família Shibata tem rompantes de solidariedade e até acolhe uma menininha que sofre abuso dos pais (como acontece muito nos países subdesenvolvidos). Como na vida, porém, nada é um conto de fadas para ter final feliz, e logo segredos vêm à tona para tirar à família a ilusão da estabilidade. Ótimo, ótimo filme.
Aliás, não é de hoje que há produções a respeito do tema, só não se olha muito para elas. O documentário À margem da imagem, de Evaldo Mocarzel, de 2003, já escancarava essa realidade para quem quisesse de fato ver. Moradores de rua de São Paulo contam suas histórias, e trazem à tona família, religião, desilusão de quem não é enxergado na megalópole, nem considerado pelos governantes em nenhuma esfera. Mas é um documentário, coisa de intelectual comunista, gente chata que gosta de pobre, então não fez tanto sucesso. 
O fato de produções com muito dinheiro tratarem do tema mostra a que ponto chegamos em termos de desigualdade social. Isso é mérito da arte: mostrar as realidades recriando-as. Só não vale, no atual contexto de arte=entretenimento, achar que a miséria é pura estética, só um mote para fazer um ótimo e até divertido filme, caso de Parasita. Nesse sentido, a produção nipônica se aproxima mais da ideia de arte como instrumento de despertar, de produzir empatia, essa capacidade humana cada vez mais esquecida. 

terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

Cozido comme il faut

Eu experimentei fazer cozido outro dia, seguindo dicas da Rita Lobo e do site Come-se. A carne ficou dura, as verduras não ficaram tão saborosas. Dali eu já havia concluído que o melhor era cozinhar a carne na panela de pressão. Bom.
Daí, Guiga veio passar o aniversário conosco. Perguntei logo o que ele queria para o almoço de comemoração. Ele pediu cozido. Fomos comprar os ingredientes - carnes (coxão duro, salpresa, lombo suíno, linguiça e bacon) e verduras (abóbora, repolho, chuchu, couve, cenoura, maxixe, jiló, aipim, batata-doce, banana-da-terra, quiabo).
Quando se decidiu que o almoço seria feito aqui, e não na casa de minha sogra, lá fui eu pesquisar de novo receitas. Desta vez, aproveitei as dicas da Neide Rigo com a observação do feitio dos cozidos alheios - cozinhar as carnes e as verduras, cada uma a seu tempo, no caldo das carnes.
Dá um trabalho enorme, mesmo eu tendo cozinhado as carnes na véspera, na pressão, com exceção das linguiças, que deixei para incorporar ao caldo pronto após refogar com cebola e alho e então ir deitando cada verdura, deixando por algum tempo e então retirando para travessas que ficavam armazenadas no forno. As carnes já prontas entraram só no final, para não desmancharem e para pegar um pouco mais do caldo agora enriquecido. Por isso, imagino eu, é que cozido é comida de ocasiões muito, muito especiais e, via de regra, o pessoal por aqui faz feijoada para confraternizações mais genéricas. Feijoada é pinto, como diria minha avó.
O caldo que sobra foi separado em duas partes - uma menor, para regar as verduras e carnes após aquecidas no forno na hora de servir, e outra para o pirão, que foi a grande estrela do almoço. Mesmo tendo feito uma tigela enorme dele, não sobrou uma colher pra contar a história!
Como fiz o cozido, o bolo de nozes e baba de moça ficou por conta, claro, de minha sogra. Lindo e delicioso!
Apesar do aperto à mesa, acho que todos, especialmente o aniversariante, gostaram de tudo.

Cabeceira

  • "Arte moderna", de Giulio Carlo Argan
  • "Geografia da fome", de Josué de Castro
  • "A metamorfose", de Franz Kafka
  • "Cem anos de solidão", de Gabriel García Márquez
  • "Orfeu extático na metrópole", de Nicolau Sevcenko
  • "Fica comigo esta noite", de Inês Pedrosa
  • "Felicidade clandestina", de Clarice Lispector
  • "O estrangeiro", de Albert Camus
  • "Campo geral", de João Guimarães Rosa
  • "Por quem os sinos dobram", de Ernest Hemingway
  • "Sagarana", de João Guimarães Rosa
  • "A paixão segundo G.H.", de Clarice Lispector
  • "A outra volta do parafuso", de Henry James
  • "O processo", de Franz Kafka
  • "Esperando Godot", de Samuel Beckett
  • "A sagração da primavera", de Alejo Carpentier
  • "Amphytrion", de Ignácio Padilla

Arquivo do blog