domingo, 21 de março de 2021

A obra que podia ter sido

Terminei de ler Torto arado, do Itamar Vieira Jr., esta semana. Tinha muitas expectativas quanto ao livro, que descobri pouco depois de ter sido lançado, já premiado em Portugal mas ainda sem o Jabuti subsequente. Comecei animada, querendo saber a história das duas irmãs quilombolas que vivem no coração da Chapada Diamantina. Itamar é geógrafo e começou a escrever o romance ainda jovenzinho. Depois tornou-se funcionário do Incra, e pôde se aproximar, por conta do trabalho, dessas populações interioranas. 
De fato, há muitas descrições de paisagens naturais - mas pouca exploração dos hábitos cotidianos. Fala-se um pouco do que acontece no terreiro, fala-se dos alimentos que os moradores da região encontram na seca e na enchente. Mas há poucos aromas, poucos gostos, poucas cores. Inevitável pensar em autores que exploram a luminosidade extrema em paisagens assemelhadas, como Graciliano, Jorge Amado, até Camus, com seu Meursault cego pela luz do sol. Graciliano e toda a geração de 30, assumida referência de Itamar, que conseguem nos guiar pelos desertos, nos fazem ter sede, fome, ilusões de ótica. 
O que mais me incomodou, porém, foi, como sempre, a construção das personagens, mais especificamente a forma como falam com o leitor. Uma das irmãs se interessou por estudar, a outra se interessou pela lida na terra. No entanto, ambas se expressam em sua apreensão da realidade de forma muito sofisticada. Claro que a sabença não está só no saber dizer, mas principalmente na forma como se pensa. Mas, mesmo no pensar, a linguagem acompanha o pensante, ou é o que costuma acontecer. Não é o que acontece no livro. A linguagem pensante de ambas tende ao rebuscado, inclusive com pouco do vocabulário local. As expressões locais, tanto da Chapada quanto da Bahia, pouco integram os pensamentos das irmãs. Poderia ser uma história de qualquer lugar. 
Alguém pode alegar que uma boa história é uma história de todo lugar. Sim, mas neste caso é tão importante o lugar em si - tudo gira em torno do pertencer àquela terra - que é estranho que ele não se entranhe completamente no falar-pensar das personagens. 
Por fim, surge uma terceira voz narrativa, a de uma entidade. Descobrimos, sem que tenha sido dada nenhuma pista anterior, que o elemento sobrenatural explica a morte de um algoz da comunidade quilombola. A ideia é ótima, aliás, o argumento geral do romance é todo ótimo. Mas daí chegamos ao título do post, sobre o que poderia ter sido a obra, e não foi, pelo menos para mim. Talvez para o autor tenha sido suficiente, acredito que foi sim. Para mim, foi como dar muitas braçadas, mesmo sem muita esperança, sabendo que ia morrer na praia. E morri, eu, leitora, à beira-mar, cheia de sabão na boca. 

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Cabeceira

  • "Arte moderna", de Giulio Carlo Argan
  • "Geografia da fome", de Josué de Castro
  • "A metamorfose", de Franz Kafka
  • "Cem anos de solidão", de Gabriel García Márquez
  • "Orfeu extático na metrópole", de Nicolau Sevcenko
  • "Fica comigo esta noite", de Inês Pedrosa
  • "Felicidade clandestina", de Clarice Lispector
  • "O estrangeiro", de Albert Camus
  • "Campo geral", de João Guimarães Rosa
  • "Por quem os sinos dobram", de Ernest Hemingway
  • "Sagarana", de João Guimarães Rosa
  • "A paixão segundo G.H.", de Clarice Lispector
  • "A outra volta do parafuso", de Henry James
  • "O processo", de Franz Kafka
  • "Esperando Godot", de Samuel Beckett
  • "A sagração da primavera", de Alejo Carpentier
  • "Amphytrion", de Ignácio Padilla

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