terça-feira, 3 de maio de 2022

Para assistir de lencinho na mão

Os filmes Medida provisória, de Lázaro Ramos, e Lunana: A yak in the classroom, do butanês Pawo Choyning Dorji, e a série Julia, da HBO, aparentemente não têm nada em comum. 
Mas têm. Lázaro e Pawo, por exemplo, estreiam como diretores de longas com esses títulos. O filme do butanês gira em torno de um professor, enquanto o de Lázaro se inicia com uma professora da vida real, dona Diva Guimarães, que o ator e diretor conheceu na Flip e que o emocionou até as lágrimas com seu depoimento de superação de mulher negra que escolheu o conhecimento para lutar contra o preconceito e abrir caminho para outras gerações (no filme, ela seria a primeira brasileira negra a receber uma compensação financeira pela escravização de seus antepassados). Tanto os dois filmes quanto a série sobre a famosa apresentadora de TV que levou a culinária francesa aos lares norte-americanos nos lembram como é importante ter uma rede de apoio, seja para realizar um sonho, ensinar-aprender ou fazer a revolução. E todos os três - filmes e série - exigem que tenhamos um lencinho a postos porque, sim, vão nos fazer chorar em algum momento.
No caso de Lunana, o protagonista, professor à força, já que na verdade quer ser cantor, é escalado, por castigo, para a mais remota vila do Butão, onde encontrará as crianças mais fofas da Terra, sobretudo a pequena capitã do grupo, Pem Zam, que eu, se pudesse, escolheria como filha. Todas as personagens - o prefeito, o guia, a cantora, as crianças, o protagonista ranzinza, sua avozinha - são adoráveis. A figura do iaque não é nada gratuita, uma vez que esse boi selvagem é de extrema importância para aldeias como aquela, e a lenda local do pastor que canta para seu iaque perdido se encontra com o jovem professor, um iaque na sala de aula. Impossível conter as lágrimas diante de tanta beleza singela.
Medida provisória é um filme que nos faz rir e chorar ao mesmo tempo. As situações cômicas se mesclam às absurdas e revoltantes, e a sensação de estupefação por sabermos que tanto, tanto daquela distopia é real nos toma o tempo todo que dura o filme. Tive vontade de sair gritando em alguns momentos, o peito chegando a doer de aflição, mesmo o filme não se pretendendo triste. Não tem redenção, ainda bem, porque nem cabe ali, mas tem esperança, tem força, tem união. E a gente precisa tanto!
Por fim, a série sobre Julia Child. Depois que se assiste a Meryl Streep no papel da apresentadora, parece ser impossível que alguém a supere. Nem se trata de superar, mas de trazer uma interpretação mais doce e sexy de Julia Child: é o que a inglesa Sarah Lancashire faz lindamente. Não sei se era sua intenção, mas ela nos seduz. Ela e Paul (David Hyde Pierce) nos seduzem, como um casal afiadíssimo, cúmplices até o fim, algo que Meryl Streep e Stanley Tucci haviam entregue no filme de 2009, mas com um pouco menos de desejo. A gente chega ao fim de cada episódio querendo um amor como aquele, amor-sexo-amizade na medida. E tem sedução extra no episódio sobre pães: só quem faz pão sabe a emoção que é tirar do forno um pão bonito. Muito, muito maior que a de fazer um prato difícil que fica delicioso - o pão já nos diz a que veio na saída do forno, se abriu pestana, se caramelizou, se faz toc-toc ao bater no fundo. Mas antes também, quando depois de medir com exatidão ingredientes, misturar e sovar, pomos a massa a fermentar. E depois, se, ao cortar, sentimos a crocância da casca e imediatamente, em seguida, a maciez do miolo, o cheiro de nozes, os alvéolos abertos. E ainda a manteiga derretendo, e todo o sabor explodindo na boca, extasiando as papilas. O pão que dá certo é amor-sexo-amizade na medida, um milagre. Um milagre. 

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Cabeceira

  • "Arte moderna", de Giulio Carlo Argan
  • "Geografia da fome", de Josué de Castro
  • "A metamorfose", de Franz Kafka
  • "Cem anos de solidão", de Gabriel García Márquez
  • "Orfeu extático na metrópole", de Nicolau Sevcenko
  • "Fica comigo esta noite", de Inês Pedrosa
  • "Felicidade clandestina", de Clarice Lispector
  • "O estrangeiro", de Albert Camus
  • "Campo geral", de João Guimarães Rosa
  • "Por quem os sinos dobram", de Ernest Hemingway
  • "Sagarana", de João Guimarães Rosa
  • "A paixão segundo G.H.", de Clarice Lispector
  • "A outra volta do parafuso", de Henry James
  • "O processo", de Franz Kafka
  • "Esperando Godot", de Samuel Beckett
  • "A sagração da primavera", de Alejo Carpentier
  • "Amphytrion", de Ignácio Padilla

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