domingo, 12 de junho de 2016

Os fios de Aracne

Me meti com bordados faz pouco tempo, como já disse aqui e no Ser o que soa. Isso me fez buscar no íntimo as histórias de Ariadne, Penélope e até Sherazade, essa bordadora de palavras.
Porém, mais no íntimo ainda, havia uma história antiga com o bordado: a história de Aracne. Talvez tenha sido pela evocação de Atena como protetora das bordadeiras e artesãos, quando escrevi sobre Ariadne e Penélope, talvez pelas pequenas e até grandes aranhas que aparecem aqui em casa, todos os dias. Por tudo isso, talvez, tenha voltado a imagem de Aracne, direto de uma pequena coleção de livros que minha mãe nos dera na infância, sobre o princípio das coisas ou algo parecido. Havia um sobre aranhas, que me fascinava, e ele principiava com a lenda de Aracne, mostrando sua disputa com Atena. Lá da infância, seus fios vieram me buscar.
Ora, Aracne era uma artesã lídia. Extremamente habilidosa, não havia quem se lhe igualasse nos bordados. Até se dizia que a própria Atena havia lhe ensinado a arte de bordar. Elogiada em toda parte, porém, ela cometeu o pecado da arrogância, dizendo a quem quisesse ouvir que devia seu talento apenas a si mesma, especialmente quando evocavam Atena, ou para fazer comparações, ou para lhe dizer de onde vinha, afinal, sua arte.
É claro que Atena ouviu essa blasfêmia. Em algumas versões do mito, havia se disfarçado para saber diretamente de Aracne o que ela pensava sobre seu dom. Despeitada, como todo bom deus grego, diante da petulância humana, Atena desafiou a artesã para um concurso de bordados.
Tendo como juradas as ninfas, deusa e artesã principiaram a bordar. Cada uma realizava um trabalho mais bonito que o outro, mas logo ficou evidente que o trabalho de Aracne era realmente melhor que o da deusa. Indignada, Atena destruiu o bordado da rival, para que as ninfas não o pudessem ver e assim considerá-lo melhor que o seu. A fúria da deusa também pode ter sido provocada pela temática dos bordados de Aracne: as torpezas cometidas pelos deuses.
Há quem diga que Aracne tentou se matar, e que Atena, com pena, transformou-a numa aranha, para que pudesse continuar bordando eternamente. Outras versões chamam a isso uma maldição da deusa - Aracne teria que bordar para sempre, sem descanso, na forma de um ser abjeto. Acho que isso tem mais a ver com um deus grego, a pena (no sentido de castigo) perpétua.
Seja como for, Aracne lança seus fios sobre minha memória, irremediavelmente apanhada até que possa dar forma a essa ideia. Criar é sempre a outra ponta do fio, a saída possível ou a transformação da teia em um mundo infindo de conexões, cores, texturas.

2 comentários:

  1. Minha querida amiga, bordadeira de palavras, também sou fascinada pela figura da Aracne e de suas pequenas manifestações aero-terrenas que povoam os cantinhos das casas com suas rendas cuidadosas... Gracias pelo lindo texto e pela lembrança desse mito tão forte e importante para nós, mulheres, tecelãs de vida...

    Lembrei também este poema da Olga Savary, de quem gosto muito:

    Além de mim
    Quero apenas
    Além de mim, quero apenas
    essa tranqüilidade de campos de flores
    e este gesto impreciso
    recompondo a infância.

    Além de mim
    - e entre mim e meu deserto -
    quero apenas silêncio,
    cúmplice absoluto de meu verso,
    tecendo a teia do vestígio
    com cuidado de aranha.

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    1. Tam, que lindeza, como tantas que você nos dá a conhecer! Amei Olga Savary, com campos de flores, desertos e teias! Um beijão, e que logo possamos nos ver!

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Cabeceira

  • "Arte moderna", de Giulio Carlo Argan
  • "Geografia da fome", de Josué de Castro
  • "A metamorfose", de Franz Kafka
  • "Cem anos de solidão", de Gabriel García Márquez
  • "Orfeu extático na metrópole", de Nicolau Sevcenko
  • "Fica comigo esta noite", de Inês Pedrosa
  • "Felicidade clandestina", de Clarice Lispector
  • "O estrangeiro", de Albert Camus
  • "Campo geral", de João Guimarães Rosa
  • "Por quem os sinos dobram", de Ernest Hemingway
  • "Sagarana", de João Guimarães Rosa
  • "A paixão segundo G.H.", de Clarice Lispector
  • "A outra volta do parafuso", de Henry James
  • "O processo", de Franz Kafka
  • "Esperando Godot", de Samuel Beckett
  • "A sagração da primavera", de Alejo Carpentier
  • "Amphytrion", de Ignácio Padilla

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