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domingo, 8 de novembro de 2020

A cabeça da medusa

Daí que levei uns desenhos recentes pra terapia, inclusive aquarelas. 
Meu terapeuta perguntou o que eu via em comum nas imagens, mitológicas ou não, de mulheres que retratei. 
Aquelas coisas de terapia, a gente nunca sabe o que responder de pronto. Falei dos cabelos, das mãos dadivosas das duas aquarelas, das mãos que jogam tudo para cima da cabeluda da quarentena. E acabei me lembrando da imagem maravilhosa, uma escultura, na verdade, da Medusa que está numa rua em Nova York e que acabou ganhando fama após as manifestações do MeToo. O artista Luciano Garbati criou em 2008 uma nova e libertadora versão do mito, em que ela aparece com uma espada em uma das mãos e na outra segura a cabeça de Perseu. Ela, que, estuprada por Poseidon no templo de Atena, é punida pela deusa por ter profanado seu espaço tornando-se um monstro que transformava quem a contemplasse em pedra. Mais uma invejinha de deus grego, claro, porque Medusa era uma jovem linda e virgem (isso me lembra a história de Aracne e sua treta com a mesma Atena, que a transformou em aranha, para "tecer eternamente", o que soa mais a castigo que dádiva). Falei dela, dos seus cabelos-serpentes que sempre me fascinaram, e do espelho, única forma de olhar para ela sem virar pedra. Espelho que também se encontra na imagem da sereia Iansã-Oxum que ainda não transformei em aquarela. 
Meu terapeuta chamou a atenção para o espelho da sereia, o canto da sereia voltado para si mesma, o que, certamente, faz sentido quando a gente está no meio do processo de individuação - são tantas as armadilhas! Mas eu pensei principalmente, em meio a tudo em que tenho pensado sobre feminino e feminismo, das minhas leituras de mundo e para o TCC, em como o que define Medusa e a sereia como monstros é justamente o que simboliza sua feminilidade, no caso, os cabelos e o sexo. Os cabelos viram serpentes e o sexo torna-se o frio corpo de um peixe. As mulheres-monstros me fizeram pensar na conveniência dessa mutação nos casos de abuso e violência sexual. Por exemplo, do já referido caso de Robinho contra a moça albanesa, uma "maria-chuteira", interesseira, alpinista social; do caso grotesco do julgamento de Mari Ferrer, que se viu transformada em ré e seu estuprador, em inocente que praticou estupro sem intenção. 
E por fim me vi diante do assassinato de Ângela Diniz, revivido no excelente podcast Praia dos Ossos, criado por Branca Vianna e produzido por Flora Thomson-DeVeaux: uma mulher livre transformada em monstro antes de ser abatida com toda justiça por seu amante, ofendido por sua liberdade, sendo ele transformado em vítima no julgamento 3 anos após o crime. Ângela Diniz morreu com um tiro na nuca e três no rosto, símbolo de sua beleza ameaçadora. Quatro tiros na cabeça da Medusa para evitar que o heroico Doca Street fosse transformado em pedra, que perdesse sua força e masculinidade, seu lugar no mundo. 
A sereia já nasceu mitologicamente monstro, a Medusa foi transformada em um. Ocorre-me que a transformação da Medusa e das mulheres em monstros e bruxas é uma estratégia de eliminação. Na verdade, cheguei à mulher-monstro Ângela Diniz porque assisti a um remake de Rebecca na Netflix, com Lily James no papel de segunda esposa do viúvo de Rebecca. Não vi o filme de Hitchcock, mas li o livro de Daphne du Maurier há muitos anos. Eu realmente não me lembrava de ter sentido o incômodo de ver uma mulher livre sendo julgada por outra mulher. Tudo bem, Rebecca é construída como uma libertina, que desrespeita e humilha o marido conservador, tudo isso para nos fazer ficar ao lado dele e da nova esposa, que move mundos para provar que a finada era cruel e dissimulada, uma Capitu com culpa reconhecida no cartório. Assisti até o fim só para ficar com um ranço enorme dos mocinhos, o marido assassino "pela honra" e a nova esposa capacho. A história de Ângela só difere do fato de não haver outra mulher para ajudar a sujar seu nome. 
A ficção recria a realidade, a realidade recria a ficção - em versões mais "leves", a mulher livre é "só" uma megera a ser domada, como a que Shakespeare eternizou no século XVI. Nas artes plásticas, o heroico Perseu é representado sempre plácido, no controle da situação, quando ergue e exibe a cabeça do monstro, seja na escultura de Canova ou no bronze de Cellini. A Medusa, histérica, segundo Caravaggio, como todo monstro, histérica como uma mulher, aquela que ela foi. Há quem defenda a leitura dos mitos de forma clássica, sem levar em conta características humanas como machismo, egoísmo, vingança. Mas é preciso levar em conta que os mitos têm humanos por trás de sua construção e, portanto, um forte viés histórico, que mostra a sociedade como era - machista, misógina, violenta. Gosto sobretudo dessa mudança de representação na escultura de Garbati: para além da inversão de papéis, a do semblante da Medusa, heroína de si mesma e de todas, semblante daquelas e daqueles que combatem a injustiça. 

domingo, 12 de junho de 2016

Os fios de Aracne

Me meti com bordados faz pouco tempo, como já disse aqui e no Ser o que soa. Isso me fez buscar no íntimo as histórias de Ariadne, Penélope e até Sherazade, essa bordadora de palavras.
Porém, mais no íntimo ainda, havia uma história antiga com o bordado: a história de Aracne. Talvez tenha sido pela evocação de Atena como protetora das bordadeiras e artesãos, quando escrevi sobre Ariadne e Penélope, talvez pelas pequenas e até grandes aranhas que aparecem aqui em casa, todos os dias. Por tudo isso, talvez, tenha voltado a imagem de Aracne, direto de uma pequena coleção de livros que minha mãe nos dera na infância, sobre o princípio das coisas ou algo parecido. Havia um sobre aranhas, que me fascinava, e ele principiava com a lenda de Aracne, mostrando sua disputa com Atena. Lá da infância, seus fios vieram me buscar.
Ora, Aracne era uma artesã lídia. Extremamente habilidosa, não havia quem se lhe igualasse nos bordados. Até se dizia que a própria Atena havia lhe ensinado a arte de bordar. Elogiada em toda parte, porém, ela cometeu o pecado da arrogância, dizendo a quem quisesse ouvir que devia seu talento apenas a si mesma, especialmente quando evocavam Atena, ou para fazer comparações, ou para lhe dizer de onde vinha, afinal, sua arte.
É claro que Atena ouviu essa blasfêmia. Em algumas versões do mito, havia se disfarçado para saber diretamente de Aracne o que ela pensava sobre seu dom. Despeitada, como todo bom deus grego, diante da petulância humana, Atena desafiou a artesã para um concurso de bordados.
Tendo como juradas as ninfas, deusa e artesã principiaram a bordar. Cada uma realizava um trabalho mais bonito que o outro, mas logo ficou evidente que o trabalho de Aracne era realmente melhor que o da deusa. Indignada, Atena destruiu o bordado da rival, para que as ninfas não o pudessem ver e assim considerá-lo melhor que o seu. A fúria da deusa também pode ter sido provocada pela temática dos bordados de Aracne: as torpezas cometidas pelos deuses.
Há quem diga que Aracne tentou se matar, e que Atena, com pena, transformou-a numa aranha, para que pudesse continuar bordando eternamente. Outras versões chamam a isso uma maldição da deusa - Aracne teria que bordar para sempre, sem descanso, na forma de um ser abjeto. Acho que isso tem mais a ver com um deus grego, a pena (no sentido de castigo) perpétua.
Seja como for, Aracne lança seus fios sobre minha memória, irremediavelmente apanhada até que possa dar forma a essa ideia. Criar é sempre a outra ponta do fio, a saída possível ou a transformação da teia em um mundo infindo de conexões, cores, texturas.

Cabeceira

  • "Arte moderna", de Giulio Carlo Argan
  • "Geografia da fome", de Josué de Castro
  • "A metamorfose", de Franz Kafka
  • "Cem anos de solidão", de Gabriel García Márquez
  • "Orfeu extático na metrópole", de Nicolau Sevcenko
  • "Fica comigo esta noite", de Inês Pedrosa
  • "Felicidade clandestina", de Clarice Lispector
  • "O estrangeiro", de Albert Camus
  • "Campo geral", de João Guimarães Rosa
  • "Por quem os sinos dobram", de Ernest Hemingway
  • "Sagarana", de João Guimarães Rosa
  • "A paixão segundo G.H.", de Clarice Lispector
  • "A outra volta do parafuso", de Henry James
  • "O processo", de Franz Kafka
  • "Esperando Godot", de Samuel Beckett
  • "A sagração da primavera", de Alejo Carpentier
  • "Amphytrion", de Ignácio Padilla

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