sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

Pintura do piso e classes sociais

Enquanto esperávamos a definição de parceiros profissionais, resolvemos enfim pintar o piso de casa (porque também não queria mais ouvir que minha casa é um cafofo). 
Pessoalmente, preferia colocar um piso novo, já que teríamos que tirar tudo do lugar de qualquer jeito, mas Guga insistiu na pintura - mais econômica, com certeza, mas com sabida menor durabilidade. Após mais de um ano de tratativas, fomos comprar tinta e acessórios. 
Tira tudo de um cômodo, coloca no meio de outro, limpa, pinta chão, espera secar, outra demão, coloca de volta. De repente, um risco no chão e desespero do marido, que, aprendi, é melhor não fomentar, preferindo o silêncio. Dormimos no meio da sala, sob ataque das muriçocas, calor infernal, Chica uivando do lado de fora até deixarmos que ela entrasse para dormir no caos com a gente. Por mais cinco dias, seguimos nessa faina, com o acréscimo da aplicação de uma resina acrílica, até o caos ir diminuindo, diminuindo a ponto de desaparecer. O resultado foi ótimo, mesmo sujeito aos arranhões das patas de Kong e mesmo evidenciando a urgência da pintura das paredes.
Em meio à empreitada, Guga comentou que pintar piso é uma solução das classes menos favorecidas para dar um tchans no ambiente. Eu nunca tinha pensado nisso, talvez porque venha justamente das classes menos favorecidas e sempre achei normal não somente a pintura toda de casa, mas também botar a mão na massa pra realizar as mudanças de todo tipo na vida. Justamente por isso, no final das contas, acho que o comentário dele faz muito sentido. 
Daí - depois que "peguei a ideia", da relação entre "remediar" e remediados - fiquei pensando nas realidades paralelas deste país e do mundo cindido em classes. Outro dia mesmo, num almoço, eu comentava a aventura que foi ir para o Reino Unido na maior dureza, já que havia surgido o tema de câmbio e viagem internacional. Esse assunto, que já rendeu tantas trocas de experiências e risadas com amigos, ali provocou um misto de complacência e estranheza, como se aquelas pessoas não fossem sequer capazes de imaginar uma situação assim. O único gringo do grupo e o único rapaz negro foram as únicas pessoas que demonstraram entender de que se tratava. Comentei com o marido, e ele teve a mesma impressão: "Claramente, outra classe social". Realmente, pensando em retrospecto, não consigo imaginar aquelas pessoas raspando a cera do piso com uma espátula, carregando móveis para lá e para cá, suando em bicas nem mesmo na execução de tarefas mais básicas, como cozinhar e lavar louça. Lembrei-me de um encontro com Guilherme Afif Domingos na TV Cultura, em que ele descobria o sentido da palavra "mistura" quando apresentávamos a ele um material educativo para trabalhadores.
Para além de pensar que essas pessoas não estão nem aí para os mais desfavorecidos que nós, prefiro me lembrar que sempre estive cercada de gente que se importa - este sim, o verdadeiro privilégio.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Cabeceira

  • "Arte moderna", de Giulio Carlo Argan
  • "Geografia da fome", de Josué de Castro
  • "A metamorfose", de Franz Kafka
  • "Cem anos de solidão", de Gabriel García Márquez
  • "Orfeu extático na metrópole", de Nicolau Sevcenko
  • "Fica comigo esta noite", de Inês Pedrosa
  • "Felicidade clandestina", de Clarice Lispector
  • "O estrangeiro", de Albert Camus
  • "Campo geral", de João Guimarães Rosa
  • "Por quem os sinos dobram", de Ernest Hemingway
  • "Sagarana", de João Guimarães Rosa
  • "A paixão segundo G.H.", de Clarice Lispector
  • "A outra volta do parafuso", de Henry James
  • "O processo", de Franz Kafka
  • "Esperando Godot", de Samuel Beckett
  • "A sagração da primavera", de Alejo Carpentier
  • "Amphytrion", de Ignácio Padilla

Arquivo do blog