terça-feira, 16 de abril de 2019

O mimimi é o pretexto dos intolerantes e covardes

Mimimi é uma coisa meio sem dono. Se alguém começa a reclamar demais, logo se fala em mimimi, servindo para designar chatos de direita e de esquerda. Ultimamente, o pessoal da ultradireita se apropriou do termo para se referir aos defensores do politicamente correto.
De todo modo, até mesmo quem não se define nem de direita nem de esquerda, por osmose, tem falado em mimimi para se referir a questões fundamentais, seriíssimas, como as que envolvem violências contra mulheres, negros, pobres, nordestinos e público LGBTS. Debaixo do meu nariz mesmo ouvi outro dia uma série de falas impensadas:
"- Quer dizer que não pode mais falar que a coisa tá preta?"
"- Ah, eu acho muita neurose isso. Quer dizer que não pode falar mais nada? Esse povo exagera! Ficou tudo muito chato com esse politicamente correto!"
Dali se passou à esperada associação com o bullying de outros tempos: "Na minha época, era normal falar essas coisas, ninguém se ofendia". Ainda tentei argumentar que nunca uma pessoa branca poderá saber o que é se colocar no lugar de uma pessoa negra que sofre todo tipo de violência, então o que lhe resta é apenas respeitar a maneira como o outro se sente. Mas para ouvidos moucos não há muito o que fazer. Está tudo entranhado, e é preciso muita consciência (algo que "reprodutores" de pensamento naturalmente não têm) e vontade de mudança para arrancar as raízes do preconceito.
Eu mesma reproduzi esse discurso por algum tempo (a chatice do politicamente correto), mas logo caí em mim de que o politicamente correto era uma forma, talvez a única na contemporaneidade, de compensar o desprezo pela ética em si, um paliativo, como as cotas na universidade. Não são o ideal, mas já são alguma coisa. Hoje, graças ao politicamente correto, o ruído é maior, os brados contra a intolerância e a covardia são mais altos, que coisa maravilhosa!
Tenho aprendido muito realizando a pura escuta. Também lendo nas redes sociais o que pensam amigos diversos - mulheres, negros, LGBTS. Sei que o exercício da alteridade é limitado - jamais sofrerei o mesmo que negros e LGBTS -, mas é essencial. E porque tenho tantos queridos lutando contra intolerâncias é que me solidarizo e cerro fileiras com eles. Por isso, ouvir que suas lutas são "mimimi" me incomoda muito e me faz ver com outros olhos as ditas pessoas "normais", e me faz preferir outras companhias no caminho.

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Cabeceira

  • "Arte moderna", de Giulio Carlo Argan
  • "Geografia da fome", de Josué de Castro
  • "A metamorfose", de Franz Kafka
  • "Cem anos de solidão", de Gabriel García Márquez
  • "Orfeu extático na metrópole", de Nicolau Sevcenko
  • "Fica comigo esta noite", de Inês Pedrosa
  • "Felicidade clandestina", de Clarice Lispector
  • "O estrangeiro", de Albert Camus
  • "Campo geral", de João Guimarães Rosa
  • "Por quem os sinos dobram", de Ernest Hemingway
  • "Sagarana", de João Guimarães Rosa
  • "A paixão segundo G.H.", de Clarice Lispector
  • "A outra volta do parafuso", de Henry James
  • "O processo", de Franz Kafka
  • "Esperando Godot", de Samuel Beckett
  • "A sagração da primavera", de Alejo Carpentier
  • "Amphytrion", de Ignácio Padilla

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