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sábado, 6 de julho de 2024

A delicadeza afrontada em "Close"

Desde que soube da existência de outro filme de Lucas Dhont, o mesmo diretor de Girl, fiquei de olho em que streaming ele apareceria. Demorou, mas em maio Close estreou no Netflix. Embora os dois filmes sejam bem diferentes, há em ambos a dor de quem quer ser apenas quem é mas encontra a intolerância e o preconceito pela frente, nos dois casos, chocantemente, em outros jovens que estão apenas começando a viver. 
Close mostra a amizade entre dois garotos de 13 anos numa cidade bucólica da Bélgica. A questão não é saber se se trata de uma relação amorosa; o que se vê é uma inocência patente na maneira como os amigos se tratam um ao outro. Até poderia se tornar uma história de amor, mas não saberemos jamais, tudo porque a violência da intolerância nascente vai abreviar essa história. A possibilidade de vida e amor é minada pelo ódio herdado de uma cultura machista. O título se refere, de antemão, a um comentário que uma colega faz acerca da relação de Leo e Remi, de que eles estavam sempre "perto", sempre juntos, se isso queria dizer que eles tinham um "relacionamento". Leo fica incomodado, pela primeira vez - nunca havia pensado nisso. Remi, uma alma de artista, nem parece se aperceber do comentário maldoso, mas sofre horrivelmente com o afastamento do amigo. 
Mais uma vez, Lucas Dhont dirige de forma magistral seus atores, a ponto de nos partir o coração. Mais uma vez, a suavidade das personagens é engolfada pela tragédia. Mas isso não é motivo para não assistirmos ao filme, pelo contrário - é a oportunidade que a arte nos dá de enxergarmos o outro, de lhe emprestarmos a nossa pele e nos deixarmos afetar, sinal indiscutível de que estamos vivos.
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sexta-feira, 25 de março de 2022

Longa jornada noite adentro contra o machismo e outras intolerâncias

Quando pensei em escrever este post, estava impactada pela notícia de um estupro coletivo que aconteceu no Carnaval deste ano, em Buenos Aires, em pleno bairro boêmio de Palermo. Uma jovem deixou uma boate local na companhia de rapazes que viajavam de carro pela Argentina e foi estuprada por eles no interior do veículo, diante de uma padaria do bairro. Não sabemos se ela estaria viva pra contar a história se os donos da padaria, que estavam ali para abrir o estabelecimento pela manhã, não tivessem visto a estranha movimentação no interior do veículo e constatado, aterrados, que ali acontecia um estupro. Munidos de vassouras e aos gritos, marido e mulher avançaram contra os criminosos, que tentaram fugir, mas foram impedidos por outras pessoas da vizinhança. A moça estava tão dopada que disse não saber como tinha ido parar ali, mas percebeu, entre flashes de consciência, que estava sendo estuprada. Nem sei nomear o que sinto com uma notícia dessas.
Pouco tempo depois, um deputado bolsonarista-morista, que supostamente teria ido à fronteira da Ucrânia com a Polônia como integrante de um grupo de ajuda humanitária, declarou que as mulheres ucranianas eram "fáceis" porque eram pobres. Mesmo tendo sido punido pelo partido e pela opinião pública, é desolador que essa ainda seja uma visão de boa parte dos homens - no Brasil, inclusive, estimulada pela onda ultraconservadora que cobriu o país. Dói ouvir que há puta em toda parte, que esta seja a resposta automática diante do absurdo expresso pelo político. 
Como o machismo não dá trégua, sobrou até pra Pedrito Almodóvar, a quem declarei de novo meu amor outro dia. Li um artigo pouco depois que chamava a atenção para a visão feminista torta em Madres paralelas, e acho que há uma certa razão quando se critica a construção da personagem de Penélope Cruz (que "usa" a jovem apaixonada por ela e ainda volta para o homem que duvidou da sua paternidade), mas mais ainda para a presença do estupro em alguns filmes do espanhol - Atame, Kika, Fale com ela, Volver, A pele que habito. No caso de Madres paralelas, até podemos pensar nas contradições vividas pelas mulheres até hoje, de se relacionarem erraticamente com boys lixo ao mesmo tempo que lutam por sua liberdade, afinal, ninguém é perfeito mesmo. Mas no caso dos outros filmes, e só falo dos casos de que me lembro, vê-se o olhar machista que persiste até mesmo em quem certamente foi vítima desse machismo. 
Só para exemplificar a extensão da jornada-luta contra o machismo, indico o magistral documentário da Netflix baseado nos diários de Andy Warhol, editados por sua secretária Pat Hackett e lançados pouco depois da morte do artista. As imagens de época e os textos dos diários lidos por um artista que teve a voz modificada por inteligência artificial para se assemelhar à de Warhol são emocionantes e nos aproximam de uma época efervescente - também varrida pela onda conservadora - e de um homem solitário e provocador, revolucionário e contido, um nome fundamental para a completa transformação da arte contemporânea e da cultura de massas em todo o mundo. É tristíssimo que Andy não possa ter vivido o amor de forma plena, sufocado pelo preconceito de sua criação e da sociedade ao redor, que ele, que resistiu a uma saraivada de tiros, tenha assistido à morte de tantos amores e amigos, vitimados pela Aids, esse tsunami de horror dos anos 1980. Até mesmo Andy Warhol, homem branco, genial, bem inserido no circuito cultural novaiorquino, sofreu os revezes do machismo, muitas vezes de si contra si. 
O machismo mata sempre. Quem for a favor da vida, do amor, da liberdade, do futuro, não pode ser a favor do machismo.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

A urgência de Almodóvar e Campion nos dias de hoje

Uma das poucas certezas que tenho na vida é que amo Pedro Almodóvar. Pode até haver um filme dele que acho mediano, mas, de modo geral, no cômputo final, amo seu trabalho. Sempre me surpreendo, feliz, com as camadas que vou desvendando a cada película. Adoro as nuances hitchcockianas mais coloridas de seus closes e recortes, suas trilhas dramáticas ou tropicalmente alegres, mas principalmente suas personagens tão humanas e suas tramas profundas por mais corriqueiras que pareçam. Achei que não era possível amar mais, mas acabo de ver Madres paralelas, com Penélope Cruz. O feminismo, sempre presente na obra de Almodóvar, aparece devidamente repaginado, com questões LGBT urgentes, maternidade, estupro, identidade e a luta principalmente das mulheres para que a memória da violência não se perca - caso do reconhecimento dos corpos enterrados em uma cova de um povoado, nos primeiros dias da Guerra Civil (para mim, desde sempre, um período histórico de grande interesse). Absolutamente necessária hoje a fala de Janis, personagem de Penélope, para a jovem Ana (Milena Smit), de que ela deveria saber de que lado estava sua família durante a guerra e que esta não cessaria enquanto os corpos dos mais de 100 mil desaparecidos ao longo do regime franquista não pudessem ser enterrados por seus familiares. Aquele calor no coração que o chamado por justiça provoca, ai. Mas tenho certeza de que muita gente hoje em dia vai detestar esse chamado por justiça e liberdade de Almodóvar, como detestará também o filme de Jane Campion com 12 indicações ao Oscar, o maravilhoso Ataque dos cães
No caso de Campion, cria-se uma expectativa acerca da temática de seu filme, aparentemente um faroeste, porque o filme é ambientado em Montana, na verdade Nova Zelândia. Tudo parece ser, mas não é. O título em português irritou os não entendedores - o original é The power of the dog, homônimo do romance de Thomas Savage. Embora sim, o nome em inglês se relacione com a passagem bíblica apontada por Peter, personagem do excelente Kodi Smit-McPhee, não se perde em nada a metáfora do cão-demônio que ameaça a paz do casal Rose e George, vividos lindamente pelo casal na vida real Kirsten Dunst e Jesse Plemons (um dos meus atores favoritos no momento) - aliás, que cena mais delicada do mundo a de Rose e George tomando chá e dançando na planície! Não preciso nem comentar o trabalho do querido Benedict Cumberbatch, que tem a mesma habilidade de seu conterrâneo Ralph Fiennes para expressar um sofrimento arduamente contido. Se em Madres paralelas vemos as mulheres prontas para tudo - para lutar, para amar, para pedir ajuda, para enfrentar as consequências da verdade, seja qual for -, em Ataque dos cães, assistimos ao mundo machista engolindo a si mesmo por não aguentar a claridade ofuscante da verdade. 
Como dois filmes tão diferentes podem ter coisas em comum? Mais ainda: por que ambos podem ser tão importantes nos dias de hoje? A escrita do desejo proibido de Campion encontra a liberdade de ser de Almodóvar, e os dois caminham na busca da verdade, esse bem tão vilipendiado hoje, deformado a serviço de impostores, intolerantes, covardes. Porém, é importante que se diga que, embora Campion e Almodóvar lancem luzes sobre o obscuro, cabe somente a nós vermos. 

sexta-feira, 13 de março de 2020

Para que serve o feminismo

"Isso é falta de homem" é uma frase que ouvi mais de uma vez na vida. Uma das vezes, foi dita por um cobrador de ônibus com quem discuti porque apoiei os pés na estrutura de ferro sob seu banco. Uma outra, foi meu ex-cunhado, que avançou sobre mim para "defender" minha irmã em uma discussão corriqueira entre nós duas - o mesmo cunhado que, após avançar também sobre meu irmão, agrediria minha irmã e que manteria contato com uma ex enquanto era casado. Seriam ele e o cobrador exemplos do homem que me faltava?
Outro dia foi dia da mulher, e eu repostei uma imagem que lembrava duas turistas brasileiras que foram assassinadas durante uma viagem. A mensagem dizia respeito ao direito das mulheres de viajarem sozinhas (= sem homens) em paz. Logo veio um amigo questionar o feminismo "de hoje", que prega o ódio das mulheres aos homens, afe. 
Se eu achasse que vale a pena, teria dito a ele uma ou duas palavras sobre o feminismo. Mas ele, no fundo, não quer saber. Invadiu uma postagem que fala de outra coisa - feminicídio - para dizer o que ELE, ómi conservador, acha do feminismo. Ainda teve a audácia de dizer como deveria ser o post, que "o certo seria". Gente! 
Como ele, muita gente não quer mesmo saber que o feminismo prega a igualdade de direitos entre homens e mulheres, e não a prevalência de umas sobre os outros. Direito de ir e vir em segurança, direito a equiparação de salários, direito a fazer o que quiser do próprio corpo, direito a fazer outra coisa da vida que não seja ser mãe e dona de casa. 
Há mulheres que querem botar fogo no parquinho? Há. Há mulheres que não querem mais saber de homem? Ô se há! Mas o fato é que mulheres normalmente não estão interessadas em guerra, violência gratuita, competição desenfreada. Não querem violentar outras pessoas para mostrar seu poder. 
"Ah, e se fossem elas que estivessem no poder? Não fariam as mesmas coisas?" Pois é - vou repetir: feminismo não é querer tomar o poder. É dividir o poder. É poder fazer junto para fazer melhor. O que não quer dizer que nós, mulheres, vamos ficar esperando os ómi aceitarem a ideia e mudarem por conta própria. É preciso ação, é preciso fazer barulho sim. Nisso, nas ações, é que está a radicalidade  (e não radicalismo) do movimento. 
Ai, será que ficou mais claro? Posso fazer mais desenhos.

terça-feira, 3 de março de 2020

Caça às bruxas, João e Maria e nazismo no mesmo balaio

Quando fazia terapia, era muito mais fácil estar atenta à sincronicidade, esse conceito junguiano para "explicar" acontecimentos que não têm relação causal, mas sim de significado. Tipo andar pela Avenida Paulista e quase ser atropelada por uma borboleta e depois topar com alguém usando uma camiseta com o nome do país que eu visitaria em seguida para na sequência ouvir alguém falando desse país. Ou estar vivendo um dia péssimo e estar dentro de um táxi e avistar uma menina atravessando a rua, e ela olhar para mim e fazer um sinal de positivo. Muitas vezes, as sincronicidades têm a cara de milagres cotidianos, envolvem pessoas que nunca mais veremos na vida.
Na última semana, porém, ela rolou de forma um pouco diferente. Estava terminando de ler o livro de Silvia Federici, Calibã e a bruxa, que trata da caça às bruxas e sua relação com o novo "papel" dado à mulher no capitalismo nascente. Tivemos de ir a Salvador para resolver umas coisas, e para fazer hora fomos ao cinema - infelizmente, só havia filmes dublados, e acabamos vendo, diante das opções infantis, um remake de João e Maria. Um pouco mais terrível, com Maria tomando o lugar da bruxa e os irmãos lançando-a no fogo sem piedade.
Nada disso tinha me chamado a atenção (até porque dormimos durante metade do filme) até assistirmos, na mesma noite, a um episódio da série Hunters, da Amazon, com Al Pacino. Trata-se de um grupo de caçadores de nazistas nos anos 1970 que acaba cruzando o caminho de uma investigadora do FBI - negra e lésbica. 
Na verdade, foi um único comentário que a personagem fez que acabou ligando todos os pontos na urdidura. Ela perguntou à namorada se conhecia a história de João e Maria (!); disse que eram duas crianças alemãs, louras de olhos azuis, que encontram uma velha senhora que mora sozinha na floresta e que era, supostamente, uma bruxa. As crianças comem tudo o que a mulher lhes oferece para depois roubar-lhe a fortuna, a casa e a vida. A investigadora da série associa a ação das crianças ao ódio aos judeus - e Federici justamente mostra em seu livro como judeus, mulheres e hereges são colocados no mesmo caldeirão, associados à bruxaria por sua não adequação ao novo status quo. Embora João e Maria sejam personagens consagradas pelos irmãos Grimm no século XIX,  a depreciação de mulheres (especialmente se independentes e consideradas inférteis) e judeus já acontecia desde o século XVI, e na Alemanha, ainda não unificada, isso só ganharia mais força, culminando no antisemitismo nazista do século XX. 
Parece que tudo isso aconteceu para que essas relações entre machismo, racismo, intolerância e sociedade de consumo só ficassem ainda mais claras para mim, mostrando a extensão dessa rede de fatos históricos que tece uma imagem tão sombria da humanidade. Triste, mas claríssima. 

terça-feira, 16 de abril de 2019

O mimimi é o pretexto dos intolerantes e covardes

Mimimi é uma coisa meio sem dono. Se alguém começa a reclamar demais, logo se fala em mimimi, servindo para designar chatos de direita e de esquerda. Ultimamente, o pessoal da ultradireita se apropriou do termo para se referir aos defensores do politicamente correto.
De todo modo, até mesmo quem não se define nem de direita nem de esquerda, por osmose, tem falado em mimimi para se referir a questões fundamentais, seriíssimas, como as que envolvem violências contra mulheres, negros, pobres, nordestinos e público LGBTS. Debaixo do meu nariz mesmo ouvi outro dia uma série de falas impensadas:
"- Quer dizer que não pode mais falar que a coisa tá preta?"
"- Ah, eu acho muita neurose isso. Quer dizer que não pode falar mais nada? Esse povo exagera! Ficou tudo muito chato com esse politicamente correto!"
Dali se passou à esperada associação com o bullying de outros tempos: "Na minha época, era normal falar essas coisas, ninguém se ofendia". Ainda tentei argumentar que nunca uma pessoa branca poderá saber o que é se colocar no lugar de uma pessoa negra que sofre todo tipo de violência, então o que lhe resta é apenas respeitar a maneira como o outro se sente. Mas para ouvidos moucos não há muito o que fazer. Está tudo entranhado, e é preciso muita consciência (algo que "reprodutores" de pensamento naturalmente não têm) e vontade de mudança para arrancar as raízes do preconceito.
Eu mesma reproduzi esse discurso por algum tempo (a chatice do politicamente correto), mas logo caí em mim de que o politicamente correto era uma forma, talvez a única na contemporaneidade, de compensar o desprezo pela ética em si, um paliativo, como as cotas na universidade. Não são o ideal, mas já são alguma coisa. Hoje, graças ao politicamente correto, o ruído é maior, os brados contra a intolerância e a covardia são mais altos, que coisa maravilhosa!
Tenho aprendido muito realizando a pura escuta. Também lendo nas redes sociais o que pensam amigos diversos - mulheres, negros, LGBTS. Sei que o exercício da alteridade é limitado - jamais sofrerei o mesmo que negros e LGBTS -, mas é essencial. E porque tenho tantos queridos lutando contra intolerâncias é que me solidarizo e cerro fileiras com eles. Por isso, ouvir que suas lutas são "mimimi" me incomoda muito e me faz ver com outros olhos as ditas pessoas "normais", e me faz preferir outras companhias no caminho.

Cabeceira

  • "Arte moderna", de Giulio Carlo Argan
  • "Geografia da fome", de Josué de Castro
  • "A metamorfose", de Franz Kafka
  • "Cem anos de solidão", de Gabriel García Márquez
  • "Orfeu extático na metrópole", de Nicolau Sevcenko
  • "Fica comigo esta noite", de Inês Pedrosa
  • "Felicidade clandestina", de Clarice Lispector
  • "O estrangeiro", de Albert Camus
  • "Campo geral", de João Guimarães Rosa
  • "Por quem os sinos dobram", de Ernest Hemingway
  • "Sagarana", de João Guimarães Rosa
  • "A paixão segundo G.H.", de Clarice Lispector
  • "A outra volta do parafuso", de Henry James
  • "O processo", de Franz Kafka
  • "Esperando Godot", de Samuel Beckett
  • "A sagração da primavera", de Alejo Carpentier
  • "Amphytrion", de Ignácio Padilla

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