segunda-feira, 5 de setembro de 2022

Meu rio possível-porque-sonhado

Foi o equivalente a um parto, pelo menos em termos de tempo: nove meses depois, terminei de bordar o vestido com imagens do São Francisco. Na verdade, tive de parar, porque não só não aguentava mais como também, por contraditório que pareça, não parava de ter ideias de coisas pra bordar (como a cauda de jubarte e a água-viva de última hora). Tinha idealizado galinha, carcará, cobra, peixes coloridos, tartaruga, flores, árvores, todo tipo de gente. Misturada à minha memória do rio, a minha vivência nordestina. E o vestido, que era pra ser uma peça de uso cotidiano, mesmo que não constante, virou uma espécie de manto da anunciação (mal comparando com a obra sublime do Bispo), algo mais "solene", para usos especiais. 
Também estava agoniada para lavar o vestido, que ficou pendurado na estante todo esse tempo, esperando pelos momentos em que havia um pouco de inspiração e vontade de bordar - houve períodos de total abandono, até de fato retomar, mesmo uns minutos por dia, a tarefa. Ontem, finalizei o bordado (resolvi simplificar algumas coisas, como os peixes, deixando só o contorno, e as galinhas, que foram trocadas por flores). Hoje lavei a peça, tomando cuidado com deixar já pronto um balde de água com vinagre e sal - e não teve nenhuma manchinha, que bom. 
Minhas mascotes estão presentes, como sempre. Está presente um Brasil mestiço, com esperança de dias melhores na estrela empinada pelas crianças (essa cena já foi parar devidamente no Instagram #desenhosporlula). Tem carranca, tem vaqueiro, tem São João, tem canoa de tolda, tem pescador e lavadeiras. Tem Iemanjá guardando as águas do Rio Mar, Opará dos povos originários e ribeirinhos. Tem casario colonial, igrejas da Barra e da família Lemos em Penedo. Flamboyant, ipê, mandacaru e coqueiro. E como falta tanta coisa! 
Que mundo imenso é o São Francisco, como ele representa um país em que acredito, que gostaria de ajudar a tornar melhor e mais feliz. Vou com o voto e com a arte, singrando nas águas do possível-porque-sonhado. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Cabeceira

  • "Arte moderna", de Giulio Carlo Argan
  • "Geografia da fome", de Josué de Castro
  • "A metamorfose", de Franz Kafka
  • "Cem anos de solidão", de Gabriel García Márquez
  • "Orfeu extático na metrópole", de Nicolau Sevcenko
  • "Fica comigo esta noite", de Inês Pedrosa
  • "Felicidade clandestina", de Clarice Lispector
  • "O estrangeiro", de Albert Camus
  • "Campo geral", de João Guimarães Rosa
  • "Por quem os sinos dobram", de Ernest Hemingway
  • "Sagarana", de João Guimarães Rosa
  • "A paixão segundo G.H.", de Clarice Lispector
  • "A outra volta do parafuso", de Henry James
  • "O processo", de Franz Kafka
  • "Esperando Godot", de Samuel Beckett
  • "A sagração da primavera", de Alejo Carpentier
  • "Amphytrion", de Ignácio Padilla

Arquivo do blog