sexta-feira, 6 de março de 2020

Sangria e o poder da comfort food

Embora já tivesse tido contato com o conceito de comfort food, foi na pós da PUC-RS, com a aula da Dani Noce, que conheci o real sentido dado ao termo: o de comida da infância, ou comida de memória. Eu associava a comfort food ao prazer trazido pelo sabor de pratos despretensiosos, ou populares, ou caseiros. Algo como comer chocolate e sentir o estresse indo embora. Mas não necessariamente com essa comida - qualquer uma - que nos remete ao passado de forma prazerosa. 
A minha lista de comfort food não é sofisticada, porque minha mãe fazia poucos pratos; minha avó fazia o trivial e alguns pratos típicos em ocasiões festivas. Havia uma tia de Mauá que cozinhava maravilhosamente, e meus bolos de aniversário normalmente eram feitos por ela, mas não consigo falar de algo específico que ela tenha feito que me traga essa leveza nostálgica ao presente. 
Já o pão de queijo fofo e o bolo formigueiro de minha mãe, sim. Sagu de vinho, suco de caju, feijão com arroz que me lembram minha avó, sim. Ovo "baiano", mingau de maizena, chá mate com leite apresentados por meu avô, sim. Em alguma festa, aparecia sangria - e ontem fiz, e ficou com o mesmo gosto de antigamente. Minha madrinha trazia gelatina colorida com creme de leite. Coisas muito simples.
Como comer para mim é um prazer, fui conhecendo culinárias diversas e elegendo algumas comidas favoritas que me alegram muito o paladar e a alma. Mas é muito diferente do efeito da memória afetada por cheiros e gostos, simples que sejam. 
O cheiro e o sabor do suco de caju me levam diretamente à praça do externato onde minha avó me buscava; eu a esperava para tomar meu lanche, somente na saída do prezinho - muitas vezes, tinha suco de caju, que minha avó preparava, na lancheira. Minha sensação ao tomá-lo hoje é de uma paz de quem ainda estava segura com relação aos seus dias, que todos teriam aquela companhia, que decepção era uma ideia que nem sequer existia. 
Ah, milagrosos suco de caju, chá, sangria.

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Cabeceira

  • "Arte moderna", de Giulio Carlo Argan
  • "Geografia da fome", de Josué de Castro
  • "A metamorfose", de Franz Kafka
  • "Cem anos de solidão", de Gabriel García Márquez
  • "Orfeu extático na metrópole", de Nicolau Sevcenko
  • "Fica comigo esta noite", de Inês Pedrosa
  • "Felicidade clandestina", de Clarice Lispector
  • "O estrangeiro", de Albert Camus
  • "Campo geral", de João Guimarães Rosa
  • "Por quem os sinos dobram", de Ernest Hemingway
  • "Sagarana", de João Guimarães Rosa
  • "A paixão segundo G.H.", de Clarice Lispector
  • "A outra volta do parafuso", de Henry James
  • "O processo", de Franz Kafka
  • "Esperando Godot", de Samuel Beckett
  • "A sagração da primavera", de Alejo Carpentier
  • "Amphytrion", de Ignácio Padilla

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