domingo, 23 de agosto de 2020

Sem tempo, irmão

Outro dia li uma crítica à atual produtividade em momentos de lazer, um fenômeno próprio da quarentena. Tipo ver série na Netflix ao mesmo tempo que faz bolo e participa de videoconferência no Zoom. 
Bom, não tecerei críticas a isso, porque fiz isso desde sempre, três ou quatro coisas simultaneamente, fosse para ganhar tempo porque morava longe e/ou porque demorei a ter acesso a várias dessas coisas (inglês/francês/judô/trabalho/faculdade/licenciatura na mesma época, por exemplo), fosse por alguma posição astral favorável dada no meu nascimento e sempre salientada por meu querido amigo Marcelo. Na verdade, agora, com a pandemia, tendo a seguir na direção contrária, de tentar focar em uma coisa de cada vez para não pirar. 
A nossa relação com o tempo sempre dá pano pra manga. Hoje, com a pandemia, o tempo parece ter saído dos trilhos, já que a rotina foi desmantelada, e é ela que nos coloca na conta do relógio, no final das contas. Não é de estranhar o sucesso de uma série como Dark, já que falei em Netflix, especialmente durante a quarentena. Os paradoxos do tempo e da existência vêm dar um nó definitivo na cabeça, apertar a mente geral. Some-se a esse tempo desmantelado a cultura das novas tecnologias portáteis e das redes sociais, e pronto, a salada está feita. Acho até que para as novas gerações isso é normalíssimo, não é nenhum fenômeno pandêmico - meu enteado consegue conversar conosco, fazer pesquisas na internet e responder a mensagens no WhatsApp, além de dar umas espiadas no filme a que estamos assistindo, sem perder a postura low profile.
Na pandemia, tudo urge, mesmo em meio ao ócio. Uma contradição digna de Dark. Todos que podem tentam fazer o tudo ao mesmo tempo dos millennials mas nem todos o fazem com a mesma naturalidade, e disso advêm estresse e frustração, porque a realidade é que, apesar da confusão temporal trazida pela Covid-19, as responsabilidades do mundo capitalista continuam a chegar, e têm sido incrementadas pelas necessidades sociais e econômicas e sanitárias de milhões de desconhecidos. Não só a sensação de poder gerir o próprio tempo foi tomada, como também invadida pelos problemas alheios, que agora são de todos. Como, então, curtir ao máximo na quarentena em casa se lá fora o panorama é dos piores? Não dá só para maratonar séries, fazer cursos, assistir a lives, bater papo no Zoom enquanto o mundo acaba e também quando ainda é preciso trabalhar, limpar a casa, comprar e fazer comida - e que bom que isso ainda é possível para muita gente!
No começo da quarentena, como já disse, fiquei meio desnorteada, e até embarquei nessa de fazer mais zilhões de coisas. Fiquei exaurida em pouco tempo, porque ainda tinha que trabalhar, limpar casa, cozinhar etc. Não, não dei conta. E vi que nem precisava, que não estou aqui para isso. Aliás, a única coisa que me devolve a sensação de ter uma rotina é justamente criar uma, fazendo uma coisa de cada vez, finalizando tarefas - e a qualidade de ser multitarefas num momento tão atípico como este acaba se esgarçando, e parece que as tarefas não têm fim (OK, algumas não têm mesmo, como limpar a casa). Teve dia que escolhi finalizar dois cursos de hortas no lugar de lavar banheiro. E tudo bem. Lavei no outro dia, e ninguém morreu. Tenho me cobrado menos, embora mantenha no horizonte minhas responsabilidades, que também ando revendo.
Talvez - essa é uma grande esperança - seja sinal de maturidade o fazer o que é possível no momento, um dia de cada vez. Ou talvez - o paradoxo dá nova volta no parafuso - não haja tempo para ser de outro modo.

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Cabeceira

  • "Arte moderna", de Giulio Carlo Argan
  • "Geografia da fome", de Josué de Castro
  • "A metamorfose", de Franz Kafka
  • "Cem anos de solidão", de Gabriel García Márquez
  • "Orfeu extático na metrópole", de Nicolau Sevcenko
  • "Fica comigo esta noite", de Inês Pedrosa
  • "Felicidade clandestina", de Clarice Lispector
  • "O estrangeiro", de Albert Camus
  • "Campo geral", de João Guimarães Rosa
  • "Por quem os sinos dobram", de Ernest Hemingway
  • "Sagarana", de João Guimarães Rosa
  • "A paixão segundo G.H.", de Clarice Lispector
  • "A outra volta do parafuso", de Henry James
  • "O processo", de Franz Kafka
  • "Esperando Godot", de Samuel Beckett
  • "A sagração da primavera", de Alejo Carpentier
  • "Amphytrion", de Ignácio Padilla

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