Nos últimos dias, um escândalo editorial ganhou as redes, guardadas as devidas proporções - sim, porque é, ainda, um basfond "de nicho", não interessa à maioria da pessoas que ainda leem notícias. Claro que chamou a atenção das pessoas do meu círculo, porque conhecemos os envolvidos ao menos pelo nome. Foi uma amiga do círculo que me enviou o link do podcast Rádio Novelo, que eu já seguia - mas o link era para o episódio "CPF na nota?", que tratava de um caso de assédio e traição vivido pela escritora Vanessa Barbara.
O que ela narra, tão antigo e atual, vai, como se fosse a primeira vez, fazendo aumentar nosso desespero, ansiosas para que termine logo, para que ela chute o macho escroto logo. Mas não, ela narra em detalhes, sem citar nomes, como aconteceu, e não como queríamos que acontecesse, e o tormento é longo para nós, foi longuíssimo, infinito, para ela.
Claro que logo, nas redes, apareceu a lista de envolvidos, o ex(graças à deusa)-marido sócio da editora Todavia e os tais amigos do marido, editores e escritores de renome. De um deles, aliás, fui reler um livro no ano passado e pensei "esse cara não entende nada de mulher". De um outro, li um livro super incensado que achei péssimo, mas até aí, OK, opinião minha (será? ou será que ele conseguiu os holofotes por fazer parte de um clube? é uma possibilidade também).
Em alguns dias, o assunto escalou nas redes, com direito a carta aberta do ex-marido se desculpando e a editora Todavia se dizendo contra qualquer forma de violência etc. Que ótimo, mas, como colocaram diversas pessoas (mulheres, subentenda-se), por que não fizeram algo prático para reduzir a desigualdade entre homens e mulheres? Sim - porque não só o sujeito traiu a mulher, mentiu, manipulou, expôs a intimidade para o grupo de 14 amigos escritores e editores cisgênero, como também ela perdeu oportunidades de trabalho. Nunca li nada de Vanessa, mas agora sei que ela era uma jovem promessa literária, com direito a Jabuti - mesmo morando no Mandaqui e "com desenho esquisito de sobrancelha", como fez questão de apontar a atual mulher de André Conti (vamos dar nome ao boi?).
E aqui o horror do trauma sofrido há 14 anos (trauma não tem data de validade, vale assinalar) foi para outro nível, o da autoexposição da esposa. Pior: vindo de uma mulher, escritora, nordestina, que se diz feminista e que, entre seus argumentos, critica o "país de merda onde vive" (e que um escritor não consegue sobreviver do que escreve, e pior é para as mulheres, vejam só), mete um "quem nunca errou, quem nunca teve grupo pra falar mal dos outros", além das já mencionadas críticas à aparência e à origem de Vanessa (ela fala até dos gostos pessoais da outra, misericórdia, como as tartarugas, o vôlei, a aparência do novo marido). Não contente, diz que Vanessa não sabe escrever, ninguém a lê, embora use o fato de Vanessa ter sido premiada, ter viajado e escrever para alguns veículos importantes justamente como argumento de que ela não foi jamais prejudicada pelo clube do bolinha editorial do qual Conti faz parte. Ela faz um desserviço a si mesma, em vez de deixar o marido resolver seu próprio B.O. (sei bem como é, vivi uma situação de uma ex querer me colocar no problema que ela tinha com meu parceiro, e eu disse não, e pedi a ele para resolver o que tinha a resolver com ela, que não era um problema meu). Então, a questão não é de mulheres disputando o macho, a esposa é outra vítima, não é uma rinha para divertir homens, nem se trata de invasão de privacidade (como alguns parças do careca argumentaram, porque Vanessa descobriu a traição e a invasão à privacidade DELA porque monitorou o computador de André) mas, de novo, sobre as desigualdades de sexo e de gênero que normalizam e normatizam comportamentos misóginos, abusivos (nem comentei o gaslighting do ex, que sugeriu que ela aumentasse a dosagem do remédio para depressão) e impedem mulheres de estar em toda parte onde gostariam de estar.
A propósito disso, os lugares ocupados por mulheres, acabei me lembrando do texto de Antonio Prata quando saiu a notícia de que uma futura lista da Fuvest só teria autoras. Mulheres. Ele ficou inconformado com a ausência dos "cânones", leia-se "homens", puro suco da cultura hegemônica patriarcal. E hoje, ao me lembrar disso, topei com um texto da genial Jana Viscardi, rebatendo Marcelo Rubens Paiva (sim, o autor do legitimamente celebrado Ainda estou aqui), que respondia, solidário, a Prata com um pesaroso "eu, como homem branco, hetero, cis, não me atrevo a dizer mais nada". Parecido com o texto do Chico Bosco que comentei aqui. Os homens estão sofrendo, coitados.
Nós, mulheres, já estamos há tempos perguntando o que fazer para mudar essa situação. E os homens, gostariam de mudar essa situação, de mudar a si mesmos, de melhorar? Alguns, com certeza sim. Mas a maioria me parece ainda confortável em seus privilégios - alguns emprestados, porque homens gays e negros não gozam de todos os privilégios de brancos cisgênero, podem compor quando muito masculinidades cúmplices ou subalternas, como aponta Raewyn Connell.
O vídeo de Pedro Dória, por exemplo, comentando o episódio da Rádio Novelo é de embrulhar o estômago, mostrando um homem que não só quer manter as estruturas patriarcais como são como também quer explicar às mulheres (mansplaining é o nome disso) como devem se sentir e lidar com suas dores, misturando, na argumentação pífia e arrogante, guerra ideológica, pautas identitárias, luta entre esquerdas, com seu viés totalmente hegemônico. Em compensação, Milly Lacombe publica um vídeo falando da raiva das mulheres, motivada justamente pelas estruturas intimamente defendidas por Dória, mas o que ela propõe é diálogo, é melhora, não só para mulheres, mas para todas, todos, todes. É isso o que as feministas de fato propõem.
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