segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Tessituras

No filme Eu maior, a Monja Coen fala de quando conseguiu ver sua vida como uma tapeçaria até aquele momento, e como percebeu o quão era responsável pela sua tessitura contínua dali em diante. Eu gosto muito da imagem do tecer, especialmente porque ela remete à ideia de ligação, relação, como bem lembrou minha amiga Cely, referindo-se aos galos tecendo as manhãs nossas e de João Cabral (e por isso gostei tanto de um texto na Revista Bula sobre os galos que acordam coisas dentro de nós, clara e bela referência ao mestre pernambucano).
As tessituras me encantam e entontecem - são parte dos milagres diários pra mim, sincronicidades segundo a psicologia analítica. Hoje, ao ouvir e curtir uma música (o post anterior, "Soltarlo", da colombiana Claudia Gómez) que o Josafá Crisóstomo também curtiu, da newsletter de outro blogueiro que adoro, o Alessandro Martins, este me convidou a assinar a newsletter; quando aceitei, veio a sugestão de eu ler um livro de uma parceira dele, Paula Abreu. Escolha sua vida, era o título desafiador.
Como ando topando desafios e querendo conhecer histórias motivacionais, topei. E gostei muito. Me identifiquei bastante com a experiência da autora, e li frases que andei dizendo pra quem quisesse ouvir nos últimos tempos, sobre a resposta do universo (não postei aqui, outro dia, sobre minha mudança, trabalhos novos e tal?), liberdade, consciência e responsabilidade. O livro da Paula não é simples autoajuda, é um depoimento (não um guia) de como ela mudou sua própria vida, quando teve um clique num momento crítico. Bom seria se a gente tivesse o tal clique antes de a coisa ficar feia, quando já tivesse dado ouvidos aos primeiros sinais da intuição. Mas é difícil não ceder aos costumes arraigados, ao comodismo e à dúvida cruel: será que mereço, será que consigo, será que posso?
Eu gostei sobretudo de saber que não sou uma maluca sozinha no mundo, como tantas vezes querem me fazer crer. Não que considere os outros modos de viver errados, longe disso, mas o meu é ideal para mim. Do mesmo modo que não julgo quem fume unzinho pra se divertir, quero não ser julgada por não ter necessidade de fumar unzinho pra isso. E mesmo procurando ser tolerante com as verdades alheias sei bem como é ser acusada de ser a dona da verdade - eu sou sim: da minha verdade, da que me cabe, onde cabe minha alma, e que pode inclusive mudar a qualquer momento, junto comigo (e OK, estou aprendendo a não querer resolver as coisas pelos outros, já vi que não ajuda nada). Quando alguém muda, incomoda os que não querem mudar, como se fossem alvo de uma acusação. Mas, como diz a autora, "não é você, sou eu".
Já cheguei a pensar que estava errada por não ter apenas um único objetivo na vida ou "o" lugar no mundo, por gostar de tantas coisas, por querer ver tantos lugares, por não querer ter um carrão, por privilegiar o tempo presente, por no fundo querer uma vida mais simples, criativa. Aí a Paula disse algo de que também gostei: sobre os espíritos renascentistas. Segundo ela, nenhum problema em ser assim, mas ter mais foco é bom para ser mais feliz (não para agradar os outros). E isso me fez pensar em coisas que já havia dito sobre a liberdade, inclusive reafirmando-as:
1. ser livre é exercer o ser quem você é, independentemente das convenções alheias
2. para ser livre é preciso ser muito responsável, porque liberdade pressupõe escolhas
3. quem é livre é, portanto, naturalmente sério, mas não sisudo - por que seria, se liberdade traz contentamento?
4. aliás, seriedade nunca foi sinônimo de sisudez
5. ser livre de fato é ser, não estar - não vamos confundir liberdade pessoal e plena com eventos esporádicos (tipo tirar a desforra, literalmente ser alforriado de vez em quando por um feitor invisível, em meio a uma vida infeliz)
6. ser livre não quer dizer ser feliz sempre, até porque a felicidade, essa sim, é episódica - mas dificilmente uma pessoa não livre é feliz de fato

A descoberta desse livro por mim e para mim se soma à do site da Gisela Rao, sobre autoconhecimento e autoestima, ótimo, divertido, recomendado pela minha amiga Marisa. Tanto a Gisela quanto a Paula se entrelaçam na tarefa que realizam com prazer de ajudar os outros, e de serem gratas por terem sido ajudadas por umas tantas pessoas no caminho. Tudo porque ambas se colocaram em movimento na direção da transformação pessoal, que levou em conta a essência de cada uma, as idiossincrasias e medos a vencer de cada uma.
E é assim. Cada pessoa tece sua vida, sua manhã, mas volta e meia reconhecemos na nossa tapeçaria um pontinho, um presente deixado por um passante-bordador-da-própria-vida. E a cantoria dos galos cresce, e cresce, uma lindeza.



Outro dia fiz este diagrama pra entender as mil percepções que estava tendo. Não é que começou a desenrolar a maçaroca?

4 comentários:

  1. Sintonia fina, Solange!
    Ontem tivemos horas de fórum aqui em casa sobre isso, de ser livre, sério, responsável... Eu mesma estava me sentindo agradecida (não sei bem a quê, mas agradecida) por chegar à meia idade com uns problemas de quem foi escolhendo, digamos, ser livre. É uma responsa mesmo. Permanente. Mas que outro jeito? Nem imagino...

    E assim se explicam essa admiração e esse afeto que sinto por vc, que os anos passam, tão raramente nos avistamos e, no entanto, sigo irmanada com sua dor e sua alegria. Estes seus textos nos permitem tecer e retecer uma rede (muitas redes) que funcionam como os ritualísticos círculos de proteção, não é? Te agradeço imensamente por eles e por me pôr nesta roda. Afinal, pra ser livre, a gente tem de se lançar; pra se lançar e dar conta, a gente precisa desses encontros afinados, desses laços cultivados.

    Feliz ano novo!
    Feliz novidade de si mesma!

    Receba meu bem-querer,
    Luciana

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    1. Lu querida, sempre tão bom te ler, saber de ti! Assim é com os que se querem bem, mesmo longe. E fico muito feliz, sempre, de nosso canto se juntar ao de outros que querem mais é viver uma vida plena, autêntica, única - como você diz, a própria ideia de rede, uma verdadeira rede de ligação, proteção, aconchego.
      E se não pudemos nos ver em 2013, sigo com a esperança de um dia nos encontrarmos ao vivo também, para um café, uma conversa, um abraço.
      beijos cheios de bem-querer!

      Solange

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  2. Mais uma leitura inspirada para 2014: O livro tibetano do viver e do morrer. Estou amando, e creio que você gostaria dele também.
    Beijos mil,
    Marisa

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    1. ah, Má, estou bem nessa vibração! depois vou procurar sim. :)
      beijos, querida!

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  • "Sagarana", de João Guimarães Rosa
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  • "A sagração da primavera", de Alejo Carpentier
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