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sexta-feira, 16 de agosto de 2024

"I may destroy you" quebra tudo

Resolvi cancelar minha assinatura da HBO porque quase não vinha assistindo nada no streaming e estou fazendo uma limpa nas despesas, mas aproveitei, já que tinha alguns dias de lambuja, para assistir à série I may destroy you, escrita, dirigida e protagonizada por Michaela Coel e premiada no Emmy há alguns anos. Michaela é uma sobrevivente de abuso sexual e escreveu sobre a experiência mais aterrorizante que uma mulher pode ter. 
Mas a série não é "apenas" sobre um episódio de abuso sexual. Embora o fio condutor e ápice seja o estupro de que a personagem Arabella se lembra somente por flashes, a história acompanha a protagonista e seus amigos Terry e Kwame em aventuras por Londres, em busca de trabalho, diversão e amor. A questão do consentimento nas relações sexuais está presente na história dos três, e vemos que não é somente Arabella que é vítima de abuso. Aqui e ali vemos o racismo, a lgbtfobia, a luta de jovens em busca de sucesso, inclusive sendo bombardeados pelo poder das redes sociais - caso de Arabella, que, alçada a escritora pelo TikTok, torna-se influencer instantânea contra abusadores e logo sofre com o assédio de haters. Poucas vezes assisti a uma série ou filme tão bem inserido no contexto contemporâneo, com tantas questões fundamentais colocadas sem artificialismos. É claro que também tenho uma queda por produções britânicas, normalmente mais cruamente humanas (Fleabag, Rain dogs, River, Slow horses, filmes do Ken Loach etc.) que as estadunidenses. Mas I may destroy you rompe as fronteiras, mergulha no espaço das redes e traz personagens colapsadas - e Michaela Coel é simplesmente brilhante em cada expressão, na construção da dinâmica fraturada de Arabella, que se equilibra em um fio enquanto segura um espelho diante de nós.

terça-feira, 30 de julho de 2024

"Macacos", de Clayton Nascimento

Foram três horas de porrada. Inclemente, incansável, ininterrupta. Necessária.
Clayton Nascimento tem apresentado seu monólogo Macacos desde 2016. Eu descobri Clayton numa novela global ao mesmo tempo que soube de sua peça - imediatamente, pensei que precisava vê-lo no palco. Achava que ele já tivesse vindo a Salvador, quando eu não havia ainda chegado aqui, e torcia para que "voltasse". 
Como acredito demais nos milagres cotidianos, estava com a cabeça a mil, angustiada com questões práticas, quando a arte veio em meu socorro: o superagitador Aldri Anunciação lançou sua sexta edição do Festival Melanina Acentuada e trouxe, entre outras maravilhas, a peça Macacos a Salvador. Quando entrei no site para a compra, os ingressos já estavam esgotados. Alguns dias depois, vi novo anúncio da peça e resolvi tentar de novo. E consegui! E era a primeira vez da peça na Bahia, em Salvador, o que Clayton enfatizou várias vezes.
O espetáculo aconteceu no Goethe, mesmo lugar do Pequeno manual antirracista, adaptado por Aldri e interpretado por Luana Xavier. Igualmente impactante, com a mesma questão terrível e persistente do racismo, também monólogo. Mas a arte é esse deslumbramento sempre, com cada artista derramando sua alma e força diante do público de forma única. Clayton fala, dança, gesticula, grita, incorpora, anda, corre por três horas. Em nenhum momento se repete (só quando é necessário "fechar" um assunto). A peça é desabafo, aula, biografia e denúncia, tudo ao mesmo tempo. Houve um momento em que achei que ela ia desandar, mas não, ele amarra tudo com a coerência de quem vive tudo na pele. Ao final, a emocionante presença de Terezinha, mãe de Eduardo, 9 anos, assassinado pela PM do Rio em 2015, que inspirou Clayton a criar o monólogo.
Eles foram aplaudidos de pé por intermináveis e merecidos minutos. A gente se sente miserável de viver num país, num mundo em que tantos Eduardos morrem diariamente pela cor de sua pele. Mas a gente se fortalece por estar ali, junto com Clayton, Terezinha, Aldri, acolhendo a dor, dando as mãos, se energizando para gritar também por justiça.

sábado, 27 de abril de 2024

Uma possível conversa entre "O avesso da pele" e "Ficção americana"?

Comprei O avessso da pele, de Jeferson Tenório, pouco antes de me mudar para Salvador, junto com dois outros livros. Meu exemplar ainda estava no shrink quando surgiu a polêmica no Sul (sempre o Sul) de que o livro não deveria ser adotado nos colégios do Paraná. Vi que estava mais do que na hora de começar a leitura. 
E que leitura! Desde a primeira linha somos levados ao mundo das lembranças do narrador, que ora conversa com o pai que acabou de morrer, ora conta sobre a infância e juventude da mãe e como ela e o pai se conheceram. Permeando essas relações e realidades, o racismo diário, que cada uma das personagens compreende de uma forma, algumas vezes se surpreendendo com o motivo de serem (des)tratados de dada maneira. A violência policial é quase uma personagem à parte, absolutamente verossímil e palpável. Tenório constrói a narrativa alternando as experiências do narrador e seus pais de forma fluida mas - como poderia dizer? - pedregosa. Porque são muitos os percalços atravessados por essas pessoas entre vida e morte. 
Calhou de eu assistir na sequência ao filme Ficção americana, com o ótimo Jeffrey Wright. Este ano vi quase tudo que estava concorrendo ao Oscar, mas porque os filmes estavam muito diversos e interessantes. Pois Ficção americana tem uma premissa atraente, que é a de um escritor com bloqueio criativo que resolve criar uma persona do "gueto" para escrever um livro que caia nas graças de editores em busca de algo "exótico". O autor, que é negro, precisa ir em busca da cultura negra que ele não vivencia. Há várias críticas implícitas na história, mas me pareceu às vezes caricato demais - ainda mais no país que tem como símbolo da luta antirracista o assassinato de George Floyd, impedido de respirar e de viver por policiais. Pensei que teria sido ótimo se o diretor e o roteirista tivessem lido o livro de Jeferson Tenório para uma vivência mais real da experiência de uma família negra, mesmo de classe média. Talvez o filme perdesse algo do humor que tenta imprimir, mas ganharia demais em profundidade.

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Lovecraft Country e a individuação

É só a gente pensar em uma busca mais profunda de si que começam a rolar as sincronicidades, entontecedoras sempre. 
Tinha, a propósito, já pensado na história do receber elogios pelo que sou, e não pelo que faço, o que me ajuda a pensar melhor em, afinal de contas, quem sou eu. 
No entorno, além disso, há todas as discussões sobre direitos humanos - de negros, mulheres, população LGBTQ, pessoas mais vulneráveis socioeconomicamente -, que têm sido desmontados no atual governo. Quem sou eu, se não luto contra a iniquidade?
E então, no lugar das borboletas que cruzavam meu caminho o tempo todo há 7 anos, aparece Hyppolita, em um episódio de Lovecraft Country, a série mais louca e mais coerente da TV nos últimos tempos, produzida por Jordan Peele e J. J. Abrams. O nome do episódio? "I am". 
Hyppolita é parte da família negra que protagoniza a série, vivenciando abusos tão absurdos que pareceriam ficção se não os soubéssemos tão reais. No episódio em questão, ela parte em busca de informações sobre um misterioso artefato que aparece em sua livraria, que pode estar associado à morte de seu marido, George. Ela acaba indo para outras dimensões temporais, que mudam cada vez que ela responde à pergunta feita pela alienígena com fabuloso black power (que, aliás, se apresenta como "I am"): "Diga seu nome". Ela grita cada vez mais alto: "Sou Hyppolita!", e acrescenta algo sobre si quando responde onde quer estar, o que quer ser: dançando com Josephine Baker, ser uma guerreira que vinga o Massacre de Tulsa (evento real de extermínio da população negra de Tulsa, Oklahoma, por moradores brancos, em 1921), ser uma astronauta (algo que ela quase foi, não fosse o fato de ser uma mulher negra). E a mulher de George. 
Ela se reencontra com o marido, que sabemos não mais existir, em outra dimensão. E ela lava a roupa suja. Fala de sua imensa raiva, contida por tantos anos, por ter se permitido encolher para caber no projeto alheio de família e casamento. Apesar de haver um apaziguamento após essa conversa com o George de outra dobra de tempo, ela enfim percebe quem ela é. Uma descobridora. Completa seu processo de individuação. 
Descobridores de nós! É isso que o self pede que sejamos!

sábado, 29 de fevereiro de 2020

Alegoria e ironia para fazer ver - Corra! e Jojo Rabbit

Acabo de assistir a Jojo Rabbit, filme do neozelandês Taika Waititi (que, aliás, merecia o Oscar de melhor maquiagem por sua transmutação de bronzeado maori para o desbotado Adolf Hitler), baseado no romance Caging Skies, da também neozelandesa Christine Leunens (mais uma obra feminina adaptada ao cinema). Ri e chorei com a saga do pequeno membro da juventude nazista que se apaixona pela jovem judia escondida em sua casa e tem um amigo imaginário chamado Adolf e nenhuma destreza para a guerra. Um pouco de fábula e ironia pode ser mais eficiente que um chamado à razão para se enxergar o mundo louco e retrógrado em que temos vivido há tanto tempo, e que volta e meia se repete a si mesmo. Sobretudo se tiver uma paleta à la Wes Anderson nos ambientes internos para realçar a narrativa.
Sinto o mesmo que senti, guardadas as devidas proporções, quando assisti a Corra!, de Jordan Peele. O escancaramento do racismo de forma tão absurda parece ser a única maneira de mostrar a existência dele a quem se nega a enxergá-lo no dia a dia. É preciso beirar o ridículo, a alegoria, para que todos enxerguem.
Não se enganem, porém: o entretenimento é só um verniz desses filmes. A crítica histórica e social é muito mais pungente em histórias aparentemente despretensiosas ou com toques de fantasia, como vemos em outras obras cinematográficas - o expressionismo alemão, por exemplo - e também em obras literárias e teatrais - logo me vêm à mente Murilo Rubião, Kafka e García Márquez e as peças de Ionesco e Beckett. Isso para não falar das artes plásticas em diversos momentos.
Bendita arte, que nos salva diariamente de uma cegueira iminente.

Cabeceira

  • "Arte moderna", de Giulio Carlo Argan
  • "Geografia da fome", de Josué de Castro
  • "A metamorfose", de Franz Kafka
  • "Cem anos de solidão", de Gabriel García Márquez
  • "Orfeu extático na metrópole", de Nicolau Sevcenko
  • "Fica comigo esta noite", de Inês Pedrosa
  • "Felicidade clandestina", de Clarice Lispector
  • "O estrangeiro", de Albert Camus
  • "Campo geral", de João Guimarães Rosa
  • "Por quem os sinos dobram", de Ernest Hemingway
  • "Sagarana", de João Guimarães Rosa
  • "A paixão segundo G.H.", de Clarice Lispector
  • "A outra volta do parafuso", de Henry James
  • "O processo", de Franz Kafka
  • "Esperando Godot", de Samuel Beckett
  • "A sagração da primavera", de Alejo Carpentier
  • "Amphytrion", de Ignácio Padilla

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