Assisti ontem a Will & Harper na Netflix, depois de ver de relance uma postagem da Cris Guerra no Instagram. Se a Cris posta, deve ser importante, no mínimo. Não precisa de muito, na verdade, para eu ver um filme do Will Ferrell, um dos poucos atores de besteirol de que realmente gosto. Ainda por cima, um road movie. Mais ainda, um documentário sobre ele e sua velha amiga Harper, que escreve seus roteiros há décadas e há pouco iniciou sua transição de gênero.
Até pode parecer improvável essa combinação de fatores, mas o resultado não poderia ser mais emocionante. Na mesma hora me lembrei das personagens de Priscila e Wong Foo, e sim, de Thelma e Louise, atravessando desertos na busca de verdades.
Will quer compreender melhor a amiga, que se questiona quanto ao que ela tanto desejou ser, se no final das contas ela não é uma aberração - o que nos parte o coração em vários momentos do filme. Will até usa sua imagem para tentar angariar simpatia para a causa trans, consegue em alguns momentos, mas em outros, sobretudo nos lugares mais conservadores, sente que colocou Harper em risco e se lamenta por isso. É terrível ver o quanto de ódio e ignorância ainda há em toda parte, mas também é especialmente tocante quando eles encontram pessoas, sobretudo mais jovens, que os apoiam, que dizem para Harper ser feliz - e o coração se reconstrói, e se aquece.
Há muito amor também entre os colegas roteiristas de Saturday Night Live, que se preocupam com a segurança de Harper durante a viagem, mas sobretudo ouvem, aprendem.
Um dos momentos mais interessantes é quando Will pergunta a Harper sobre relacionamentos, se ela buscará um novo relacionamento após ter se divorciado da mulher com quem teve duas filhas. Harper diz que sim, mas que não sabe ainda que tipo de relacionamento busca, se com homens ou mulheres. Daí vemos que o mais importante para ela não era o sexo, mas o gênero, o sentir-se num corpo inadequado desde sempre.
Em outro momento, Harper diz se dar conta de que, quanto mais procura ficar bonita, mais percebe o quanto falta para se "parecer uma mulher". Broken heart again. Isso me lembrou uma fala do Dustin Hoffmann acerca de sua personagem em Tootsie - ele dizia que no processo de transformação pediu aos maquiadores que o tornassem uma mulher bonita, porque isso era imprescindível para que se passasse por mulher, e os maquiadores disseram que não seria possível, o que o fez pensar em como estava condicionado a ver nas mulheres apenas beleza, e não o quão interessantes elas podiam ser. Até mesmo Harper trouxe no seu renascimento essa pecha patriarcal. Padrões, padrões.
Mas, para além das dificuldades, o que fica desse filme é a lição de amor e amizade que Will e Harper nos dão. Tolerância, aceitação, acolhimento, aprendizado de si e do outro. Outras possibilidades de masculinidade. Quiçá esperança, que isso a gente sempre busca (no fundo, a gente sempre pratica).