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domingo, 29 de setembro de 2024

Will e Harper, uma história de amor e amizade

Assisti ontem a Will & Harper na Netflix, depois de ver de relance uma postagem da Cris Guerra no Instagram. Se a Cris posta, deve ser importante, no mínimo. Não precisa de muito, na verdade, para eu ver um filme do Will Ferrell, um dos poucos atores de besteirol de que realmente gosto. Ainda por cima, um road movie. Mais ainda, um documentário sobre ele e sua velha amiga Harper, que escreve seus roteiros há décadas e há pouco iniciou sua transição de gênero. 
Até pode parecer improvável essa combinação de fatores, mas o resultado não poderia ser mais emocionante. Na mesma hora me lembrei das personagens de Priscila e Wong Foo, e sim, de Thelma e Louise, atravessando desertos na busca de verdades. 
Will quer compreender melhor a amiga, que se questiona quanto ao que ela tanto desejou ser, se no final das contas ela não é uma aberração - o que nos parte o coração em vários momentos do filme. Will até usa sua imagem para tentar angariar simpatia para a causa trans, consegue em alguns momentos, mas em outros, sobretudo nos lugares mais conservadores, sente que colocou Harper em risco e se lamenta por isso. É terrível ver o quanto de ódio e ignorância ainda há em toda parte, mas também é especialmente tocante quando eles encontram pessoas, sobretudo mais jovens, que os apoiam, que dizem para Harper ser feliz - e o coração se reconstrói, e se aquece. 
Há muito amor também entre os colegas roteiristas de Saturday Night Live, que se preocupam com a segurança de Harper durante a viagem, mas sobretudo ouvem, aprendem. 
Um dos momentos mais interessantes é quando Will pergunta a Harper sobre relacionamentos, se ela buscará um novo relacionamento após ter se divorciado da mulher com quem teve duas filhas. Harper diz que sim, mas que não sabe ainda que tipo de relacionamento busca, se com homens ou mulheres. Daí vemos que o mais importante para ela não era o sexo, mas o gênero, o sentir-se num corpo inadequado desde sempre. 
Em outro momento, Harper diz se dar conta de que, quanto mais procura ficar bonita, mais percebe o quanto falta para se "parecer uma mulher". Broken heart again. Isso me lembrou uma fala do Dustin Hoffmann acerca de sua personagem em Tootsie - ele dizia que no processo de transformação pediu aos maquiadores que o tornassem uma mulher bonita, porque isso era imprescindível para que se passasse por mulher, e os maquiadores disseram que não seria possível, o que o fez pensar em como estava condicionado a ver nas mulheres apenas beleza, e não o quão interessantes elas podiam ser. Até mesmo Harper trouxe no seu renascimento essa pecha patriarcal. Padrões, padrões.
Mas, para além das dificuldades, o que fica desse filme é a lição de amor e amizade que Will e Harper nos dão. Tolerância, aceitação, acolhimento, aprendizado de si e do outro. Outras possibilidades de masculinidade. Quiçá esperança, que isso a gente sempre busca (no fundo, a gente sempre pratica).

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sábado, 27 de abril de 2024

A perfeição e a poesia de "Dias perfeitos"

Fazia muito tempo que eu não via um filme de Wim Wenders, até porque ele realmente deu uma sumida do cinema ficcional. Estava mais na vibe dos documentários, como o ótimo Sal da terra, sobre a obra de Sebastião Salgado, e mais uma meia dúzia sobre diversos temas ligados a cultura. Mas em mim ficou para sempre a impressão deixada por Asas do desejo e Tão longe, tão perto
Então, de repente, me aparece esse Dias perfeitos, feito no Japão, em Tóquio, para ser mais exata. Em alguns momentos, me lembrou Murakami, mas é Wim Wenders mesmo, pura poesia na luz, nos silêncios e na trilha sonora em fitas cassete. O protagonista, o Sr. Hirayama, trabalha limpando banheiros públicos em Tóquio. Há uma repetição da rotina do personagem ao longo do filme, mas as pequenas variações, encontros, modos de olhar, são profundas mesmo sem provocar grandes efeitos dramáticos na narrativa. Hirayama, vivido pelo excelente Koji Yakusho, quase não fala, ou fala somente o necessário, mas ele observa tudo, experimenta a vida por meio da sua observação silenciosa.  
Claro que é um encantamento à parte conhecer, junto com ele, a vida cotidiana em Tóquio, e como a tecnologia nipônica está nos banheiros públicos, muitos deles enriquecidos com elementos de design. Mas há uma beleza igualmente nipônica na maneira como Hirayama realiza suas tarefas, nos lembrando que não há trabalho mais importante que outro e que limpar um banheiro é tão fundamental quanto o trabalho de um banqueiro. Aliás, logo percebemos que limpar banheiros é uma opção de Hirayama, mas por que ele optou por isso? Há uma sugestão de qual seja a razão quando aparecem na história a sobrinha e a irmã do protagonista. 
Outro dia, li um comentário do Ivan Martins sobre o filme, alertando para a aparente perfeição da vida de Hirayama que esconde o medo da vida em si. É muito provável, é algo que muitos de nós fazemos, tentar ter controle do cotidiano para não vermos o trem descarrilar, provavelmente porque já o vimos antes. Até onde conseguimos ir nesse controle? Hirayama, que enxerga o sublime no ordinário, vê sua paz ameaçada com a irmã, a sobrinha, o colega folgado, o suposto pretendente de seu interesse amoroso, a dona do restaurante (que interpreta lindamente, em japonês, "House of the rising sun", da banda The Animals). E tudo sucede no filme como sucede conosco, uma sequência de acontecimentos diários que são tirados do eixo pelo outro, que é inferno e paraíso, paraíso e inferno. A única certeza é que não conseguimos nunca ser os mesmos, depois do descarrilamento, dessas "falhas na Matrix", para mencionar outra película, ainda que os dias pareçam perfeitamente iguais.   

Uma possível conversa entre "O avesso da pele" e "Ficção americana"?

Comprei O avessso da pele, de Jeferson Tenório, pouco antes de me mudar para Salvador, junto com dois outros livros. Meu exemplar ainda estava no shrink quando surgiu a polêmica no Sul (sempre o Sul) de que o livro não deveria ser adotado nos colégios do Paraná. Vi que estava mais do que na hora de começar a leitura. 
E que leitura! Desde a primeira linha somos levados ao mundo das lembranças do narrador, que ora conversa com o pai que acabou de morrer, ora conta sobre a infância e juventude da mãe e como ela e o pai se conheceram. Permeando essas relações e realidades, o racismo diário, que cada uma das personagens compreende de uma forma, algumas vezes se surpreendendo com o motivo de serem (des)tratados de dada maneira. A violência policial é quase uma personagem à parte, absolutamente verossímil e palpável. Tenório constrói a narrativa alternando as experiências do narrador e seus pais de forma fluida mas - como poderia dizer? - pedregosa. Porque são muitos os percalços atravessados por essas pessoas entre vida e morte. 
Calhou de eu assistir na sequência ao filme Ficção americana, com o ótimo Jeffrey Wright. Este ano vi quase tudo que estava concorrendo ao Oscar, mas porque os filmes estavam muito diversos e interessantes. Pois Ficção americana tem uma premissa atraente, que é a de um escritor com bloqueio criativo que resolve criar uma persona do "gueto" para escrever um livro que caia nas graças de editores em busca de algo "exótico". O autor, que é negro, precisa ir em busca da cultura negra que ele não vivencia. Há várias críticas implícitas na história, mas me pareceu às vezes caricato demais - ainda mais no país que tem como símbolo da luta antirracista o assassinato de George Floyd, impedido de respirar e de viver por policiais. Pensei que teria sido ótimo se o diretor e o roteirista tivessem lido o livro de Jeferson Tenório para uma vivência mais real da experiência de uma família negra, mesmo de classe média. Talvez o filme perdesse algo do humor que tenta imprimir, mas ganharia demais em profundidade.

segunda-feira, 20 de novembro de 2023

Continue a nadar

Eu ia postar somente sobre o filme Nyad, com as maravilhosas Jodie Foster e Annette Bening, mas calhou de ontem de eu ter ido ver Ritchie na Concha Acústica e acho que as duas coisas se complementam perfeitamente. E também ter assistido, num outro dia, ao ótimo Quantos dias, quantas noites, documentário de Cacau Rhoden sobre finitude e velhice. 
Nyad é a história da nadadora Diana Nyad, que, depois de amargar na juventude o insucesso da travessia marítima de Cuba à Flórida, resolve, com mais de 60 anos, realizar o feito. Annette Bening nos arrebata no papel da nadadora obcecada e algo intratável, sobretudo por se mostrar na idade que tem - ela, que foi uma diva do cinema e se mostra ainda melhor sem o disfarce da beleza juvenil. Ela é escudada pela talentosíssima Jodie Foster, que vive sua amiga e treinadora - e vemos que o filme tem como pano de fundo uma competição consigo mesma, mas é muito mais que isso, é sobre amizade, solidariedade, afeto, confiança, envelhecimento. 
O documentário Quantos dias, quantas noites trata também do envelhecimento, tanto no seu aspecto de longevidade, uma realidade a que cada vez mais se assiste no mundo todo (apesar da fome, crises humanitárias, guerras), quanto no de aceitação da finitude - sim, estamos indo longe, mas uma hora o caminho acaba. E o que fazemos com essa verdade inviolável? Há vários momentos tocantes no documentário, mas eu destacaria dois, o da jovem ativista de cuidados paliativos AnaMi, que aceita sua finitude na luta contra o câncer, se despedindo sem desesperos da vida (ela morreu poucos dias depois de assistir ao doc pronto), e o de Mona Rikumbi, bailarina cadeirante de cerca de 50 anos que celebra a vida de maneira contagiante. Ambas mostram, para além da relação com longevidade e finitude, como se relacionam com o que a vida lhes trouxe. A lição parece simples, mas é preciso que se repita sempre: se tiver que descascar cebolas, descasque cebolas. Ou, uma vez no mar, continue a nadar - já nos ensinou a peixinha Dory. 
Quando vi aquelas milhares de pessoas, a maioria entre 50 e 70 anos, lotando a Concha Acústica para ver Ritchie, vi que estavam não só em busca da nostalgia das canções de 40 anos atrás, mas presentes numa experiência de grande alegria, cantando, dançando, recordando o bom do amor. Lá estava Ritchie, do alto dos seus 71 anos, ainda fazendo o que sabe fazer tão bem, embalando nossas histórias, mas com novas camadas, como a homenagem feita a várias mulheres, entre elas Zilda Arns, Angela Davis, Maria da Penha, Marielle Franco e Rita Lee. E quando a gente vai atrás dessa experiência de alegria percebe que também continua a nadar, mesmo achando que não sabe. 

Cabeceira

  • "Arte moderna", de Giulio Carlo Argan
  • "Geografia da fome", de Josué de Castro
  • "A metamorfose", de Franz Kafka
  • "Cem anos de solidão", de Gabriel García Márquez
  • "Orfeu extático na metrópole", de Nicolau Sevcenko
  • "Fica comigo esta noite", de Inês Pedrosa
  • "Felicidade clandestina", de Clarice Lispector
  • "O estrangeiro", de Albert Camus
  • "Campo geral", de João Guimarães Rosa
  • "Por quem os sinos dobram", de Ernest Hemingway
  • "Sagarana", de João Guimarães Rosa
  • "A paixão segundo G.H.", de Clarice Lispector
  • "A outra volta do parafuso", de Henry James
  • "O processo", de Franz Kafka
  • "Esperando Godot", de Samuel Beckett
  • "A sagração da primavera", de Alejo Carpentier
  • "Amphytrion", de Ignácio Padilla

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